Nos verdejantes jardins do Palácio de Cristal do Porto de Portugal, na sempre bem-vinda Feira do Livro, comprei o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, de Adalberto Alves (INCM, 2013), de atraente capa verde.
Verde não é um arabismo, segundo este dicionário. Com efeito, nos verbetes ver- vem vereda, vergel, verna e verniz, mas não verde. Ainda bem. É que, ao ler o ponto 2 do respetivo prefácio, sob o título "A contrafação etimológica como vertente de combate ao Islão", fiquei com a desgradável sensação de que padeceria do mesmo mal (inverso) que aponta aos demais dicionários portugueses que "ainda hoje repetem acriticamente, e de um modo geral, sobretudo as falsificadas etimologias, nos tais arabins e arabregos, congeminadas, há séculos, pelos monges da Idade Média, no silêncio das suas celas".
O verde escapou a ser usurpado como arabismo, ou herança moura.
Mas já não o azul. O azul não escapou à constante tentativa (desde a Alta Idade Média dos tais monges silenciosos), arabizante ("de arabizar - arabista; que ou quem tem empatia com os Árabes e a sua civilização"). Azul é, afinal em Árabe, sempre segundo o Dicionário: "lápis-lazúli - da cor do céu (sem núvens); a cor azul do céu"... pelo que custa muito a imaginar que os ditos monges não conhecessem já o suficiente de corantes (já agora, verbete também ausente) para reconhecerem que "azular" fosse "dar cor azul a; pintar de azul". Daí o desapontador pequeno passo em direcção à apropriação de "azulejo"; afinal, segundo o Dicionário, meramente originado em az-zulayj, palavra do século XV (logo, muito posterior aos tais monges silenciosos) e que quer dizer... "a pedrinha polida".
Apropriação arabizante que incorre, afinal, no mesmo "pecado" apontado no prefácio aos calados monges.
Mas vai mais longe. Demasiado, para o meu gosto (voltando ao citado, inteligente, prefácio): "Não haverá excesso de arabofilia por parte do autor? Para responder a tal perplexidade, torna-se necessário recuar até ao século VIII, quando na Península Ibérica, pela primeira vez, começam a ser postos em contacto o romanço dos cristãos, língua derivada do latim vulgar, e o árabe (clássico, ou nas suas diversas formas dialetais) dando lugar ao fenómeno que os linguistas chamam adstrato. Embora a Civilização islâmica, nessa altura, não tivesse ainda alcançado o cume do seu esplendor, era, fora de dúvida, culturalmente muitissimo mais sofisticada do que a dos rudes Romano-Visigodos da Hispânia". O que é, naturalmente, injusto para os monges e demais antepassados nossos deste Portugal adormecido, de há muito conhecedores de cores e pedrinhas polidas.
Não corresponde à verdade que "por esses tempos, o galaico-português não existia, encontrando-se ainda em estado proteico, no ventre do leonês, no que à sua componente latina respeita". Na verdade, os nossos monges calados integravam a Callecia. Existente já antes da chegada dos romanos - daí que aquele romano que atravessou o rio Douro para norte e, por conseguinte, Calle, recebeu o triunfo sob a designação dos nossos antepassados que aqui conquistou: Decimus Junius Brutus Callaicus. Em bom galaico-português: o bruto (verbete que também não vem no Dicionário) que conquistou os calados - povo que, de resto (como informa Plínio na sua História Natural, contemporânea de Jesus Cristo e, por conseguinte, uns bons séculos anterior ao Alcorão) era um dos fornecedores de ouro para Roma, juntamente com os Lusitanos e os Astures. Mantendo-nos ainda há cerca de 2000 anos, está bom de ver que os romanos posteriores ao Brutus respeitaram a divisão em três dos povos que encontraram acima do Douro, tendo cabido a Augusto criar as novas capitais dos Callaicus (ou, galaicos - o que vem a dar galegos): Bracara Augusta, Lucus Augusti, Asturica Augusta. A língua que estamos a ler é a mistura entre a dos indígenas galaicos e o latim dos invasores e colonizadores romanos. E existia, como está bom de ver, muitos séculos antes da chegada dos Árabes.
No tempo de Carlos Magno, quando o mapa da União Europeia se desenhava sem a Hispania, este imperador europeu já se correspondia com o Rei Cristão da Galiza (é assim que está escrito, e.g., em Carlos Magno e o Império Carolíngio, de Louis Halphen, 1970, tradução de Artur Pinto, Editorial Início, 1971). Na realidade, o Califado de Córdova, primeiro dependente e depois independente, de Damasco (Síria), nunca chegou a conquistar os nossos monges Callaicus, ou calados, ou galegos - que assim rica de melhor do que ouro é esta lingua que nos fala enquanto a lemos. Em tempo de "guerras santas" os nossos monges, e mais os nossos antepassados deste Portugal adormecido, uniram-se sob o Cristianismo. E suportavam as razias ("expedição militar, raide - incursão, invasão"). E daí, depois, já fartos, a Reconquista (não vem neste Dicionário). Em tempo em que, infelizmente, ainda não se havia consagrado a separação entre Política e Religião. Em tempo em que ainda se levantavam armas por meras convicções íntimas, religiões. Desculpas.
Com os Talibã de novo no poder no Afeganistão, com o regresso ao medievalismo, é bom que o recordemos. Em bom português (soma de galaico, latino, arábico, ladino e demais cores e calões): o tempo é de recordar e não de calar.
Luis Miguel Novais