Riqueza, civilização e prosperidade nacional

sábado, 30 de outubro de 2021

A Parte Maldita

Reunidos pessoalmente (com vídeo-excepções), após um intervalo de dois anos devido à pandemia, os líderes do G20 enfrentam a crise climática e pandémica em Roma. Todo um programa, na bella città.

No livro que publicou em 1949, com o título que tomo emprestado, Georges Bataille introduziu a subtil distinção com que nos debatemos todos, hoje mais do que nunca: o consumismo consome como um fogo na floresta - na versão original francesa introduz a noção de "consummation", estágio mais avançado (que, entretanto, parece que já atingimos) da "consommation". Em bom português, o consumo consome-nos (figurativa e, afinal, também literalmente).

G20 é o fórum intergovernamental adequado para começar a dar respostas a estas questões globais. Será desta que deixaremos de roer as unhas?

Luis Miguel Novais

sábado, 23 de outubro de 2021

Bang bang

Passei grande parte do ano 2020 a escrever agumentos para filmes e séries audiovisuais. 

O confinamento trouxe uma substancial redução nas minhas outras atividades e, ainda por cima, a minha filha Marta acabara de se licenciar em Som e Imagem pela Universidade Católica. Estivemos os dois divertidos (dentro do possível) em casa a produzir, em contacto com alguns produtores com obra feita. Até concorri ao concurso de argumentos portugueses da Netflix (e perdi, com a justificação de que, na altura, como era natural, não estavam interessados em "filmes de época", que eram as minhas duas propostas de guiões, baseados nos meus livros em publicação Princesa Rei e Natal com Pombal).  Algumas dessas obras audiovisuais (que incluíram também uma adaptação de A Janela do Cardeal e Our Heritage, um documentário sobre a protecção do Património Mundial), por assim dizer, filhas do confinamento, encontram-se em desenvolvimento - o que, aprendi entretanto, nesta indústria não quer dizer necessariamente que venham a passar ao ecrã.

Ao escrever argumentos, impus-me não enunciar violência de qualquer tipo. Fiz questão de que assim fosse. E até encontrei alternativas bem divertidas de criar tensão sem precisar de mostrar sangue ou armas. Concluo que é por pura estupidez que se continua a explorar nos ecrãs formas (cada vez mais) explícitas de violência - com o animal argumento de que é o que as pessoas querem ver, ou na formulação políticamente correcta: "porque é o que vende". Ainda há pouco tempo, vi com desgosto a última temporada de A Casa de Papel, que para mim é mesmo a última porque apostou na estúpida e insuportável violência - quando, até aí, tinha primado pela inteligência. O homicídio (mesmo que por negligência) de uma cineasta por um actor esta semana, em pleno set de filmagens, fala por si. A quem serve a violência? Ademais pseudo-fingida?

Arrelia-me solenemente que andemos a fazer leis internacionais nas Nações Unidas (uma grande aquisição civilizacional que nos distingue dos outros animais) que não passam do papel. Estou a pensar, por exemplo, no Pacto de Direitos Civis e Políticos de 1966 que diz, expressamente, que a liberdade de expressão sem interferências encontra contraponto em deveres e responsabilidades (por parte dos Estados, titulares de televisões, rádios, jornais, redes sociais e demais produtores, autores, distribuidores, pessoas singulares ou coletivas e you name it) para com os direitos ou reputação de terceiros, e a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas - é assim que está escrito no artigo 19 (aqui).

Basta de bang bang, seringas a toda a hora e feios, porcos e maus. Chamam a isto arte?

Luis Miguel Novais

sábado, 16 de outubro de 2021

Movido a água

Durante a recente campanha eleitoral para as eleições na Alemanha ficou célebre uma gargalhada do fundador da Tesla à pergunta de um dos candidatos a sucessor de Merkel: se o futuro seriam os automóveis eléctricos ou a hidrogénio? Um artigo de fundo da The Economist desta semana (aqui) sobre a futura economia do hidrogénio convenceu-me de que a dúvida é legítima. Provavelmente, o erro são os carros eléctricos.

Há uns anos, mais precisamente entre 2003 e 2006, cicularam no meu Porto de Portugal autocarros de transporte colectivo movidos a hidrogénio - só ficou o brilhante slogan que conservo no título. Dizem-me que ainda (já) circulam alguns mais em Cascais, além de outras cidades pelo mundo - a Wikipedia de língua portuguesa (versão brasileira, cada vez mais dominante, por negligência do Governo de Portugal) até já tem uma página: Ônibus movido a hidrogênio (aqui). O génio é muito capaz, entretanto, de ter saído da lamparina: o que sai pelo escape dos motores dos autocarros e demais automóveis movidos a hidrogénio é... água.

Assim sendo, sabendo nós que as baterias eléctricas (pelo menos, para já) são caras, não recicláveis, de vida curta, propiciadoras de pouca autonomia e dependentes da rede eléctrica para reabastecer, ganha sentido a utilização do hidrogénio como combustível fóssil, sucedâneo da gasolina, do gasóleo e dos outros gases que movem veículos livremente mas poluem pesadamente. Afinal, o pateta não era o alemão.

Luis Miguel Novais

sábado, 9 de outubro de 2021

Europa em ebulição

Felizmente, parece poder retirar-se das palavras do presidente da China que esta não vai desencadear agora uma guerra mundial, invadindo Taiwan. O "pacificamente" das suas palavras sobre a união da China terá de prevalecer, para o bem comum da Paz. Entretanto, a Europa está também em ebulição, em duas importantes frentes: a Igreja e a União.

Começando pela Santa Madre Igreja, o facto de (mais um) escândalo no seu interior ter surgido, agora em França, coração da Europa, produz-me as seguintes reflexões. A Igreja não é masculina, nem feminina, nem LGBT+, nem tem nada a ver com sexo. Os pederastas abusadores de menores terão de ser julgados nos termos, criminais e civis, das leis dos respetivos territórios (conforme resulta do Direito Internacional, designadamente da Convenção para os Direitos Civis e Políticos, de 1966). Penso que o Papa Francisco deverá aproveitar o momento de "vergonha" para lançar Concílio destinado a abrir a Santa Madre às mulheres e, porque não, aos LGBT+. Concílio de onde desejavelmente resultarão novas regras claras sobre a matéria do inter-relacionamento pessoal (eventualmente, mediante eliminação do celibato dos sacerdotes), cuja violação deverá redundar, mediante processo equitativo, na penalização e eventual expulsão dos prevaricadores. Pode parecer ousado, mas se há coisa que aprendemos nestes dois mil anos foi que a Igreja é líder, até na adaptação aos sinais dos tempos.

A União Europeia, espelho da ideia mesma de Europa, também ferve em banho Maria. Em bom rigor, foi o tribunal constitucional alemão (cabeça da Europa), quem iniciou as hostilidades, agora aproveitadas pelo tribunal constitucional polaco. A questão jurídica é uma daquelas que podem ser definidas, lapidarmente, como do ovo e da galinha: as constituições dos Estados membros permitiam-lhes delegar soberania na União? O que é certo é que o Tratado de Lisboa definiu uma clara transferência de soberania, e até a personalidade jurídica da União. O que tem levado o Tribunal de Justiça da União Europeia a afirmar o primado do direito da União sobre os direitos nacionais dos 27 Estados membros - direitos constitucionais incluídos. Parece-me que com razão. A questão não é de lana caprina, toca os alicerces da União Europeia. O que, sabido por Polónia, Hungria e Bulgária, tem sido aproveitado para abanar o edifício. A questão não se vai resolver com sanções económicas (tudo tem um preço, mas ninguém consegue comprar justiça). Parece-me inevitável uma nova cimeira constitucional da União, uma revisão do Tratado de Lisboa - que, recordemos, incorporou parte da suposta constituição europeia chumbada em referendo... na França.

Esta semana entrevi, após longa ausência, a protagonista da minha última peça jornalística no jornal Semanário, nos idos de 1989. Naquele ano, senti vir o fim do modernismo, o pós-modernismo tinha chegado em força, todos poderíamos doravante dizer o que quiséssemos, que tudo seria valorizado por igual; todos teríamos acesso aos jornais e televisão, até a ignorância seria opinião. Intitulei-a, à peça: "Com pernas e cabeça". Chamei-lhe, à protagonista: "Europa". Disse, e fui.

Luis Miguel Novais

sábado, 2 de outubro de 2021

História Natural

Quem faz o favor de me ler já sabe que aprecio muito a História Natural de Plínio, um meu colega (jurista, gestor, autor) que foi contemporâneo de Jesus Cristo.

Segundo nos narra seu sobrinho e herdeiro Plínio (o jovem), o sábio Plínio faleceu, ou melhor desapareceu, na erupção de 78 d.C. do vulcão Vesúvio.

Ao observar (pela televisão) as impressionantes imagens do atual vulcão em erupção nas Canárias, recordei os Plínio, porque o jovem afirma que o sábio embarcou de Nápoles pelo golfo em direção a Pompeia levado pela sua curiosidade natural. E, se bem recordo as suas Cartas, nelas afirma que o sábio terá acabado por falecer intoxicado com os gases que soltava o vulcão. Gases que, observando agora as reportagens das Canárias, não são letais? Não existem, neste caso?

Outro fenómeno extraordinário da natureza ocorreu esta semana na Califórnia, onde um incêndio obrigou à cobertura com folhas de alumínio do General Sherman. Esta extraordinária árvore gigante, por muitos considerada a maior árvore do mundo, já viveu muitas coisas, nos seus estimados quase 3.000 anos de vida. E, desta feita, sobreviveu com mão humana de ajuda.

A mesma mão humana que, observarão os Plínio e Sherman, pouco faz para proteger a nossa casa comum. À medida que sobem os preços dos combustíveis fósseis, já se houvem vozes a clamar pelo erro da aposta nas energias renováveis, como se respeitar a natureza pudesse ser um erro - a observação técnica de que a rede de energia assim não funciona é, ademais, ignorante (qualquer estudante liceal deve conhecer, para além da banda rock, a diferença entre AC-DC: os circuitos de corrente alternada ou direta de eletricidade).

A um mês da COP26 (a 26º Cimeira das Nações Unidas dedicada às alterações climáticas), ficam estas notas aparentemente contraditórias: passados 2.000 anos de História Natural ainda não conhecemos a plenitude dos fenómenos vulcânicos, insistimos em depender dos combustíveis fósseis mas, do mal o menos, ainda nos damos ao trabalho de proteger árvores sábias.

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Porto de Moreira

Penso que Rui Moreira tem feito uma boa gestão da cidade que escolhi para viver, o Porto de Portugal.

Somos sócios na vetusta Associação Comercial do Porto (fundada em 1834, com sede no Palácio da Bolsa), de que ele foi também presidente. Já então apreciei a sua gestão como presidente dessa associação: uma gestão eficaz, diligente, sem grandes devaneios, de manutenção da herança sem renunciar ao progresso, de aproveitamento inteligente dos recursos disponíveis. Sem esbanjar, nem estragar, fruir. Um dia estávamos reunidos em assembleia geral na bela sala do Palácio da Bolsa destinada às mesmas e recordo que observou qualquer coisa do género, a propósito de turistas que nos observavam: "deixem-nos assistir, assim pelo menos ficam a saber que usamos o que temos". Parece-me um sentir portuense. Que quadra com o da cidade. E com a gestão que tem feito enquanto presidente do município.

Votarei nele, de novo, neste domingo. Porque, já se sabe: em equipa que ganha, não se mexe.

Luis Miguel Novais

sábado, 4 de setembro de 2021

Arabismos

Nos verdejantes jardins do Palácio de Cristal do Porto de Portugal, na sempre bem-vinda Feira do Livro, comprei o Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, de Adalberto Alves (INCM, 2013), de atraente capa verde.

Verde não é um arabismo, segundo este dicionário. Com efeito, nos verbetes ver- vem vereda, vergel, verna e verniz, mas não verde. Ainda bem. É que, ao ler o ponto 2 do respetivo prefácio, sob o título "A contrafação etimológica como vertente de combate ao Islão", fiquei com a desgradável sensação de que padeceria do mesmo mal (inverso) que aponta aos demais dicionários portugueses que "ainda hoje repetem acriticamente, e de um modo geral, sobretudo as falsificadas etimologias, nos tais arabins e arabregos, congeminadas, há séculos, pelos monges da Idade Média, no silêncio das suas celas". 

O verde escapou a ser usurpado como arabismo, ou herança moura.

Mas já não o azul. O azul não escapou à constante tentativa (desde a Alta Idade Média dos tais monges silenciosos), arabizante ("de arabizar - arabista; que ou quem tem empatia com os Árabes e a sua civilização"). Azul é, afinal em Árabe, sempre segundo o Dicionário: "lápis-lazúli - da cor do céu (sem núvens); a cor azul do céu"... pelo que custa muito a imaginar que os ditos monges não conhecessem já o suficiente de corantes (já agora, verbete também ausente) para reconhecerem que "azular" fosse "dar cor azul a; pintar de azul". Daí o desapontador pequeno passo em direcção à apropriação de "azulejo"; afinal, segundo o Dicionário, meramente originado em az-zulayj, palavra do século XV (logo, muito posterior aos tais monges silenciosos) e que quer dizer... "a pedrinha polida".

Apropriação arabizante que incorre, afinal, no mesmo "pecado" apontado no prefácio aos calados monges. 

Mas vai mais longe. Demasiado, para o meu gosto (voltando ao citado, inteligente, prefácio): "Não haverá excesso de arabofilia por parte do autor? Para responder a tal perplexidade, torna-se necessário recuar até ao século VIII, quando na Península Ibérica, pela primeira vez, começam a ser postos em contacto o romanço dos cristãos, língua derivada do latim vulgar, e o árabe (clássico, ou nas suas diversas formas dialetais) dando lugar ao fenómeno que os linguistas chamam adstrato. Embora a Civilização islâmica, nessa altura, não tivesse ainda alcançado o cume do seu esplendor, era, fora de dúvida, culturalmente muitissimo mais sofisticada do que a dos rudes Romano-Visigodos da Hispânia". O que é, naturalmente, injusto para os monges e demais antepassados nossos deste Portugal adormecido, de há muito conhecedores de cores e pedrinhas polidas.

Não corresponde à verdade que "por esses tempos, o galaico-português não existia, encontrando-se ainda em estado proteico, no ventre do leonês, no que à sua componente latina respeita". Na verdade, os nossos monges calados integravam a Callecia. Existente já antes da chegada dos romanos - daí que aquele romano que atravessou o rio Douro para norte e, por conseguinte, Calle, recebeu o triunfo sob a designação dos nossos antepassados que aqui conquistou: Decimus Junius Brutus Callaicus. Em bom galaico-português: o bruto (verbete que também não vem no Dicionário) que conquistou os calados - povo que, de resto (como informa Plínio na sua História Natural, contemporânea de Jesus Cristo e, por conseguinte, uns bons séculos anterior ao Alcorão) era um dos fornecedores de ouro para Roma, juntamente com os Lusitanos e os Astures. Mantendo-nos ainda há cerca de 2000 anos, está bom de ver que os romanos posteriores ao Brutus respeitaram a divisão em três dos povos que encontraram acima do Douro, tendo cabido a Augusto criar as novas capitais dos Callaicus (ou, galaicos - o que vem a dar galegos): Bracara Augusta, Lucus Augusti, Asturica Augusta. A língua que estamos a ler é a mistura entre a dos indígenas galaicos e o latim dos invasores e colonizadores romanos. E existia, como está bom de ver, muitos séculos antes da chegada dos Árabes.

No tempo de Carlos Magno, quando o mapa da União Europeia se desenhava sem a Hispania, este imperador europeu já se correspondia com o Rei Cristão da Galiza (é assim que está escrito, e.g., em Carlos Magno e o Império Carolíngio, de Louis Halphen, 1970, tradução de Artur Pinto, Editorial Início, 1971). Na realidade, o Califado de Córdova, primeiro dependente e depois independente, de Damasco (Síria), nunca chegou a conquistar os nossos monges Callaicus, ou calados, ou galegos - que assim rica de melhor do que ouro é esta lingua que nos fala enquanto a lemos. Em tempo de "guerras santas" os nossos monges, e mais os nossos antepassados deste Portugal adormecido, uniram-se sob o Cristianismo. E suportavam as razias ("expedição militar, raide - incursão, invasão"). E daí, depois, já fartos, a Reconquista (não vem neste Dicionário). Em tempo em que, infelizmente, ainda não se havia consagrado a separação entre Política e Religião. Em tempo em que ainda se levantavam armas por meras convicções íntimas, religiões. Desculpas.

Com os Talibã de novo no poder no Afeganistão, com o regresso ao medievalismo, é bom que o recordemos. Em bom português (soma de galaico, latino, arábico, ladino e demais cores e calões): o tempo é de recordar e não de calar.

Luis Miguel Novais

sábado, 21 de agosto de 2021

Fiasco e golpe

Infelizmente, o pior aconteceu: os talibã tomaram o Afeganistão.

The Economist de hoje coincide com o que aqui no Portugal Adormecido escrevi a semana passada: eu falava no possível princípio do fim da Pax Americana; volvida uma só semana, com Cabul tomada, leio que "the fiasco in Afghanistan is a huge and unnecessary blow in America's standing" (o fiasco no Afeganistão é um grande e desnecessário golpe na reputação da América).

Visto de longe, mesmo que conscientes da gravidade e das prováveis repercussões, o sentimento é, uma vez passada a estupefacção, de necessidade de reacção. Falhadas as armas (em 20 anos), resta-nos o Direito Internacional.

Os talibã tomaram um país, um membro das Nações Unidas. A República Democrática do Afeganistão é membro de tratados internacionais, inclusivé o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.

Como escrevi em Virados para a Lua, por demasiadas vezes "...o direito internacional é realidade virtual, do domínio da ficção. É mero mordomo dos direitos nacionais: servo fiel em tempos de paz; criado mudo em tempos de guerra". 

Pois esta é uma boa ocasião para o Direito Internacional fazer ouvir a sua voz.

Luis Miguel Novais

domingo, 15 de agosto de 2021

Pax Americana

Não são tão vistosas, mas parecem-me igualmente impressionantes, as notícias e imagens do abandono do Afeganistão, naquela que foi a longa guerra iniciada com a derrocada das torres gémeas, em 2001.

Impressiona o falhanço de uma guerra em que, afinal, vencem os talibãs. Lembra que hoje é Ferragosto, o dia da memória das férias de outro Augusto caído, as feriae augusti do império romano que tombou para os bárbaros. Lembra que, afinal, também nós falhámos às mãos de bárbaros. Tantos anos e não conseguimos. O Afeganistão cai para os talibãs.

Escrevo à hora em que os talibãs estão aos portões de Cabul. Ficarão por aí? Será este o princípio do fim da Pax Americana?

Luis Miguel Novais

sábado, 7 de agosto de 2021

Cabeça baixa

Há um certo sentido senhorial, medieval, que persiste na sociedade deste Portugal adormecido. É praticamente invisível. Manifesta-se por códigos. Esconde-se em reuniões secretas. Aparentemente inócuas, ou apenas invisíveis. Chamam-lhe Maçonaria (assim com letra grande há deus grego). Ninguém pode saber até que ponto se entranha. Nem o que é, realmente: uma associação benévola? Uma associação de malfeitores? Ambas?

A Maçonaria dos séculos passados teve a sua importância, mesmo para a afirmação de uma sociedade aberta, como a que se quer. Mas é já hoje, apenas, uma invisível corrente. Aparentemente forte. Possivelmente fraca e apenas aparente. Mas é como já na idade média se dizia sobre as bruxas: que las hay, hay.

O assunto apenas tem importância porque o secretismo grassa onde devia prevalecer a transparência. Aí no coração de qualquer sociedade: os tribunais. O lugar onde se curam as feridas sociais. Aí onde, acima de todos os lugares, tem de prevalecer a independência e a imparcialidade dos juízes.

Em causa própria, não há bons juízes - é sabedoria popular, facto notório como se diz em jargão jurídico. Pelo que é incompreensível a notícia desta semana sobre as decisões (ademais contraditórias) entre Conselho Superior da Magistratura e Supremo Tribunal de Justiça. Sobre, precisamente, as (mais uma vez) adiadas obrigações declarativas a que devem (forçosamente) estar submetidos os juízes.

Poderá ser independente um juiz que integra uma hierarquia como a Maçonaria?

Poderá ser imparcial um juiz maçon que julga uma pessoa independente?

Luis Miguel Novais

sábado, 31 de julho de 2021

Estufadores

Ter nascido em famílias de industriais abriu-me o horizonte para lá das fronteiras nacionais. Os meus pais levaram-me aos grandes museus de arte e ciência de Londres e Paris, coisa que já tive oportunidade de replicar com as minhas filhas. Um dos meus museus favoritos de sempre é o, recentemente reaberto, Science Museum de Londres, agora com a oportuna exposição Our Future Planet (a que, sinal dos tempos, apenas tive acesso parcial online, aqui).

O título é mesmo sobre estufas e não sofás. Estufadores somos nós todos, que criamos gases de efeito de estufa a um ritmo, hoje, insustentável. Desde logo, porque somos muito mais pessoas e animais na Terra. Mas também porque dependemos absolutamente de energia e alimentação que (ainda?) liberta e faz acumular gases que criam um efeito estufa na atmosfera - essencialmente carbono (indústria e transportes) e metano (agricultura e pecuária).

É curioso que o conceito de estufa tenha estado connosco há tanto tempo. Consultei o Dicionário de Morais (edição de 1889), e aí vem a definição de Estufa, na grafia original: "recinto fechado cuja temperatura se eleva por efeitos artificiais; galeria envidraçada para conservação de plantas de paizes quentes, ahi preservadas dos frios do inverno; há estufas para seccar assucar, e tambem para evaporar a humidade de outros corpos... É uma estufa, diz-se de um recinto muito quente".

De regresso ao nosso século, aprendi imenso com a Climate Talk "Our Future Planet: Global Greenhouse Gas Removal" (que recomendo vivamente, aqui). Conversa séria de boa divulgação científica sobre como, nos últimos 150 anos, fizemos subir em um grau centígrado a temperatura da Terra (facto mensurável e medido, para aqueles que não acreditam no nexo com secas, fogos, chuvas e inundações contemporâneos); sobre como, se nos esforçarmos muito, todos, lá para o meio do século lograremos "apenas" mais um grau (que é melhor do que os dois a mais, certos se não fizermos nada) - não vou ser spoiler, vale mesmo a pena ouvir.

Esta semana, pelo Jornal Oficial da União Europeia (C302, de 28 de julho de 2021), ficámos a saber quem são os estufadores, por país europeu, em milhões de emissões industriais "essenciais" (isentas de taxa de carbono):

1. Alemanha, de longe em primeiro, com 634 milhões;

2. França, Itália, Espanha, Polónia, Holanda e Bélgica, cada um com cerca de 200 milhões;

3. Os restantes 20, com menos de 100 milhões cada um (este Portugal adormecido com 42 milhões de emissões "grátis").

É bem certo que, também esta semana, a Alemanha (na sequência das recentes inundações de efeito estufa), viu aprovada pela mesma União Europeia autorização para verter uns biliões na redução das suas emissões.

E é bom que comecemos todos a agir em conformidade (seja reduzindo as emissões, plantando árvores, ou sugando o carbono pela engenharia). Para não passarmos de estufadores a estufados.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 23 de julho de 2021

Nuvens de Verão

Bem vistas as coisas, apenas conhecemos os nossos antepassados de há cerca de 12.000 anos para cá.

Apesar dos vestígios de ossos e dentes de humanos com milhões de anos, aquilo que de mais antigo até nós chegou de mais concreto, literalmente, são as construções, especialmente as do Egipto e do Perú. Que datam já de depois da última Era de Gelo na Terra, finda há cerca de 12.000 anos. Um pequeno inciso na grande História da Terra, feita de aquecimentos e arrefecimentos.

E o que sabemos sobre como se viveu na Era de Gelo? Nada. Teriam electricidade? Saberiam voar e rolar através de máquinas? Aquecer-se artificialmente... Terão sido eles?... Não sabemos.

É bom pensarmos agora nisso. Antes que se nos faça tarde.

Luis Miguel Novais

sábado, 17 de julho de 2021

Almas velhas

Na sua infinita sabedoria de escárnio artístico, esta semana, a Isabel saiu-se com esta: "és uma alma velha". E tem razão. Desde o virar do milénio, quando me foi dado compilar e escrever o Virados para a Lua, tenho sentido uma ingente necessidade de descobrir os escuros seculares que encobrem o passado da minha alma.

Como aí se diz, a páginas 63:

"Seguramente pouco aterrados, mais alunados, os terráqueos corpos.

Corpos, fatos da mente espacial.

Corpo e mente, distintas substâncias, assim possibilitadoras da liberdade humana e da imortalidade.

Conversar com pessoas de outros séculos é o mesmo que viajar.

Este ensaio foi escrito mentalmente. Entre voos e leituras, idas e voltas ao meu abrigo, aéreo Porto. Obrigado Leonardo, Sebastião José, Renato, N, Paulo, LM et alter.

Respeitando alguma arbitrariedade dos factores. Real e virtual.

Na visita à floresta, em frente da ilha dos corpos fátuos, perto de Bilbao, aprendi que um viajante, tendo-se perdido numa floresta, não deve andar de um lado para o outro, nem tão-pouco parar no mesmo lugar; deve caminhar sempre no mesmo sentido e nunca retroceder por razões fracas, ainda que tenha escolhido esse caminho por mero acaso. Deste modo, mesmo que não chegue precisamente onde deseja, logrará acabar por chegar a algum sítio. Onde estará, certamente, melhor do que no meio da floresta.

Casa.

Segundo a calculadora e linguagem universal que a ideia de Leibniz (antes de todos) concebeu, não somos mais de trezentos e trinta e três milhões e trezentos e trinta e três mil e trezentos e trinta e três viajantes a contribuir para o progresso humano.

A sério, contados na Internet".

(Virados para a Lua, Luis Miguel Novais, Edição do autor, 2007)

Os trágicos recentes eventos meterológicos do dilúvio na Europa e onda de calor na América vieram recordar-nos que estamos a aquecer incomportavelmente a nossa Casa comum. Segundo os dados da NASA, os últimos sete anos são dos mais quentes desde que há registos (ver aqui). Mas incomparavelmente mais quentes, mesmo descontando a grande redução que se deu durante os confinamentos globais da pandemia - essa espécie de Acto de Deus da qual as almas velhas, como a minha, haveremos de retirar as devidas consequências de progresso.

Perdidos no meio da floresta...

Luis Miguel Novais

sábado, 10 de julho de 2021

Maçonaria e benfiquismo

Dois ídolos tardo-portugueses, distorcidos e hoje descabidos, mostraram esta semana os seus pés de barro.

Imagino um diálogo entre o juiz de instrução Carlos Alexandre e o procurador da república Rosário Teixeira: "o homem confessou no Parlamento que foi o pior erro da vida dele", diz um; "e que foi o Dr. Ricardo quem o fez cometer", responde o outro; "mais vale agora", afirma um; "mais vale tarde do que nunca", completa o outro.

O benfiquismo é um resquício do Estado Novo do século XX, que idealizou Lisboa como capital de um Império. As maçonarias podem reclamar a Liberdade, desde a Revolução do Porto do século XIX até à Revolução de Abril. Numa sociedade aberta e plural todos os gostos têm lugar. Mas não como tribos ou desculpas para latrocínios.

Recordemos: pluribus unum e a lei é igual para todos. São bons princípios. Que se lhes siga a prática.

Luis Miguel Novais

sábado, 3 de julho de 2021

Certificados equivocados

Tomada a segunda dose da vacina, obtive um "Certificado de Vacinação", também denominado "Certificado Digital Covid da UE". Que, em letras pequenas, lá diz: "Este certificado não é um documento de viagem. As evidências científicas sobre a vacinação, teste e recuperação da COVID-19 continuam a evoluir, também em função de novas variantes procupantes do vírus. Antes de viajar, verifique as medidas de saúde públicas aplicáveis e as restrições existentes no local de destino". Estamos conversados sobre União Europeia e "certificados". Sem mais comentários, além do título.

Melhor figura faz hoje a China, na comemoração dos 100 anos do seu partido único, ainda denominado comunista mas tão capitalista de Estado como qualquer outro regime que dê preferência à propriedade e iniciativa privadas como motor de desenvolvimento económico. Os sinais são o que são e o trajo do agora Chairman Xi, mais as suas medidas e discurso, reaproximam a grande China dos anos de chumbo do Chairman Mao, afastando-a do trilho de progresso iniciado por Deng Xiaoping. O futuro dirá se estamos perante uma terceira via.

Medida saudável de civilização foi a conseguida pelos Estados Unidos da América na OCDE esta semana: o acordo para a futura imposição de uma tributação mínima de 15% para os lucros económicos tenderá a acabar com a vergonhosa competição pelos saldos fiscais, alimentando uma indústria da fiscalidade internacional, mais ou menos legal, mais ou menos corrupta. Todos gostamos de pagar menos impostos. Mas saber que há mínimos, aplicáveis a todos, conforta.

Vacinado e certificado, espero não estar equivocado.

Luis Miguel Novais

sábado, 26 de junho de 2021

Europa dos valores

Numa semana em que a vida profissional me deixou com a sensação de estar a nadar num esgoto, reclamando no lugar próprio a devida independência dos juízes profisssionais deste Portugal adormecido (no quadro do meu dever profissional como advogado de contrariar a velha dúvida romana sobre quem guarda afinal o guardião), soube-me bem ouvir António Costa dizer, mais coisa menos coisa: "não é possível estar na União Europeia sem aceitar, respeitar e praticar os valores que são os da União Europeia".

A afirmação do Senhor Primeiro-ministro deste Portugal adormecido "leva água pela barba". Penso que ele pensava apenas no sucedido esta semana na Itália e na Hungria. Ou então, mais ironicamente, na (primeira) emissão de dívida pública europeia (começo da NextGenerationEU).  Mas a mim pareceu-me que, sem ele o saber, o seu dito também vai acabar a aplicar-se a Portugal: no quadro da acção judicial no Tribunal de Justiça da União Europeia que vai acabar por acontecer se o Supremo Tribunal de Justiça persistir em não "aceitar, respeitar e praticar os valores que são os da União Europeia", como o da independência dos juízes.

Estamos a chegar ao interessante ponto (para mim e para os demais que pensamos que é o respeito que nos iguala e une na diferença) em que valores não é apenas sinónimo de dinheiro.

Luis Miguel Novais

sábado, 19 de junho de 2021

Ilha de Lisboa

Numa semana recheada de importantes e felizes acontecimentos internacionais (com destaque para o realinhamento dos Estados Unidos da América com a Nato, com a Europa e com a Rússia, contra a China, além da louvável re-eleição por unanimidade do secretário-geral das Nações Unidas, o nosso António Guterres), leva a palma o Senhor Primeiro-ministro António Costa pela imposição, sem medos, de uma cerca sanitária à Área Metropolitana de Lisboa.

Portugal não é "Lisboa, e o resto paisagem". Ao contrário do que temos vindo a padecer nos últimos seiscentos anos. Recordo da investigação para o meu livro (ainda inédito) Princesa Rei que, no ano de 1384, Lisboa foi alvo de três cercos, um dos quais sanitário, o maior dos quais pelo arco formado pelas depois famosas Linhas de Torres. Por essa altura se começou a notar fortemente uma lesboetização de Portugal (graças aos "pagamentos" devidos por D. João I aos que o apoiaram, e à concomitante "compra" do Porto). Que não nos tem ajudado. E que, se pode ter sido compreendida à luz de uma "capital de império", hoje em dia, e sobretudo nesta terceira república, não faz sentido nenhum.

Defendo, há muito tempo, que deveríamos seguir o exemplo de outros países do nosso tamanho e maior desenvolvimento, que beneficiam de duas capitais económicas e uma capital administrativa. Falo da Suiça e dos Países Baixos. A primeira tem a capital administrativa ao centro, em Berna, e duas capitais económicas, uma a sul e outra a norte, respetivamente Genebra e Zurique. O mesmo sucede com a Holanda: Haia, Roterdão e Amsterdão. O mesmo deveria suceder com este Portugal Adormecido: capital administrativa em Coimbra, capitais económicas em Lisboa e no Porto.

Do modo como estamos organizados, neste "Lisboa não sejas francesa" que copia o modelo da "Ilha de França" (região que tem por capital a asfixiadora Paris), um espirro pode muito bem dar, mutatis mutandis, uma pandemia. Valerá uma cerca?

Luis Miguel Novais

sábado, 12 de junho de 2021

Não tem pés

Felicito Sir António Horta-Hosório pelo título. Dá gosto ver um país que reconhece o mérito, mesmo daqueles que nele não nasceram. Neste Portugal adormecido é mais pontapé no traseiro. Ou então como na anedota que corre no Minho: entra um padre num comboio com um balde destapado cheio de navalheiras, para horror generalizado dos passageiros; há um que não resiste e pergunta: o senhor padre não receia que alguma navalheira se escape? Não, são portuguesas - responde o sábio padre.

Há cerca de dez anos atrás sacrifiquei a minha confortável vida pessoal e profissional pelo bem público. Fui chamado, em agosto de 2011, para apagar um grande fogo que então ardia nas ruas e ameaçava transformar-se num Solidarnosc à portuguesa, no nosso caso a partir dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Ouvi a palavra pátria, dita pelo ministro que me chamou. Lá fui, na mesma semana, largando tudo.

Quem quiser dar-se ao trabalho de ouvir a minha audição no Parlamento sobre o assunto dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, no dia 20 de março de 2012, verificará que tive de bater a porta com estrondo para ser ouvido e impedir o encerramento dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo. Para acinte generalizado, salvo a honrosa excepção do Dr. João Soares que me fez um elogio de carácter, que agradeci - está tudo na gravação, em áudio ou vídeo (aqui).

Esta semana tive a felicidade de poder ler no Diário da República uma boa notícia relacionada com novas construções nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo: a Resolução do Conselho de Ministros nº72/2021, que autoriza a realização de despesa com vista à execução do programa de aquisição de seis NPO da classe «Viana do Castelo» destinados à Marinha Portuguesa, por mais de 350 milhões de euros.

Se os Estaleiros Navais de Viana do Castelo tivessem sido encerrados, não haveria onde construir estes seis navios em Portugal. Era mais dinheiro arrojado borda fora.

Como já dizia um, hoje esquecido, sábio velho ditado português: "a verdade não tem pés, mas caminha".

Luis Miguel Novais

sábado, 5 de junho de 2021

Staycation

Dos idos de jovem cantor e compositor musical retenho a maior facilidade da língua inglesa sobre a portuguesa para exprimir conceitos emocionais e reinventar-se. Por alguma coisa se tornou a língua da Pop (de popular) e, entretanto, a língua franca global. Os exemplos recentes abundam, desde o Brexit (British Exit) ao mais recente Staycation (Stay at home for a vacation).

Antes em casa para férias, do que num Hospital com Covid. Pensamento que me ocorreu esta semana ao tomar a minha primeira dose de vacina da Pfizer. Para já, está a correr bem. Mas não deixa de ser extraordinário estarmos a ser cobaias ao vivo de um novo sistema de vacinas (mRNA) que pode mudar o mundo, para o bem e para o mal (cabe recordar a minha reflexão sobre o assunto, em dezembro de 2020, aqui: Bodybot).

O acaso (esse espaço de Deus) quis que me calhasse tomar uma mRNA. Seja feita a Vossa vontade.

Luis Miguel Novais

sábado, 29 de maio de 2021

O dedo de Wittgenstein

Pelos anos 80 do século XX, vivia eu então os meus acelerados 20 anos. Ainda hoje me surpreende o que fazíamos e pensávamos, imersos numa bolha cultural vanguardista. Por essa altura, descobri Ludwig Wittgenstein e o seu Tratactus Logico-Philosophicus, cujo centenário agora se comemora (aqui), e cuja influência intelectual ainda hoje me atravessa frequentemente o pensamento.

Tal como fez David Sylvian na sua música Steel Cathedrals, apetece-me aqui inserir uma das frases soltas por esse outro génio que foi Jean Cocteau, a propósito da então suprema novidade que era, no tempo deste, a disseminação da gravação em som e imagem: "e se Alexandre o Grande renascesse e parasse um momento para pensar, o que me falta conquistar?"... "uma máquina de jacquard, um transístor"... respondeu com ironia Cocteau. Também consciente dos limites do nosso mundo, definido pela linguagem. Conforme introduziu Wittgenstein no discurso racional, humano. Necessariamente limitado no tempo e no espaço. Que é o nosso. Feito de imagens, que traduzimos em proposições. Sons e imagens com propósito. Se estivermos de acordo sobre os pressupostos, concordaremos necessariamente com as conclusões. É lógico. Um gato torna-se um gato. O significado torna-se unívoco - enunciou Wittgenstein. O que implica todo um mundo. Ou, tão somente, o nosso (de cada um) pequeno mundo (da linguagem). Que hoje, para certa surpresa dos nossos antepassados de há 100 anos, flui num dedo de ecrã.

No princípio era o Verbo, diz a Bíblia. No fim também, acrescentou Wittgenstein.

Luis Miguel Novais

sábado, 22 de maio de 2021

Olhar sem ver

Numa sociedade aberta e plural tem de haver associações secretas. E quem tem o poder de decidir sobre a vida ou a fazenda dos demais tem de dizer ao que vem. Não se pode esconder. Sob pena de prevaricação.

Isso, prevaricação. Que vem a ser traição. Aquilo por que veio esta semana pronunciado para julgamento o meu associado Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto - somos associados na Associação Comercial do Porto, uma associação não secreta, tenho por ele estima e muito me surpreenderá que venha a ser condenado.

Como de costume, não me vou pronunciar sobre o caso concreto, excepto para dizer o seguinte: os tribunais não são os juízes. Se fossem, não existiam acusadores, nem defensores, nem procuradores da República, nem advogados das partes, nem processo, nem juízos, nem recursos, nem caso julgado, nem símbolos como o das balanças em equilíbrio.

E aos juízes dos tribunais, numa sociedade democrática, aberta e plural, pede-se (é um eufemismo) que decidam em consciência, com independência e imparcialidade, com base em facto e razão - que é para isso que lhes pagamos bons salários e estão impedidos de exercer outras funções.

É por isso que, entre outros titulares de cargos políticos e altos cargos públicos (todos aqueles que têm o poder público de decidir sobre a vida e fazenda dos demais) - coisa que, salvo erro, escapou ao Parlamento deste Portugal adormecido esta semana -, os juízes têm de declarar a sua pertença a associações, mesmo que secretas. Sob pena de prevaricação.

Luis Miguel Novais

sábado, 15 de maio de 2021

Comunismo ou Liberdade

O "ou" do título poderá confundir os bots letrados que, com base nos livros do passado que lhes foram dados a ler para desenvolver a sua inteligência artificial, corresponderão comunismo com liberdade, em sinonímia. Porém, o do título foi o slogan vencedor de eleições democráticas limpas, esta semana, na Região Autónoma de Madrid, Espanha.

Margaret Tatcher venceu e convenceu no Reino Unido pelo conservadorismo progressista de raízes humildes e convicções fortes. Tem em Isabel Diaz Ayuso, que não esconde a inspiração, uma digna sucessora em Espanha. Foi esta quem introduziu o slogan "Comunismo ou Liberdade" na campanha eleitoral que a levou à re-eleição em Madrid.

Curioso o comentário de alguns explicadores pós-eleitorais: "as pessoas cansaram-se com a pandemia".

Luis Miguel Novais

sábado, 8 de maio de 2021

Europa da Justiça

Longe dos holofotes e megafones da comunicação social, em silenciosos paralelos com as saudáveis Cimeiras, como a que hoje decorre no Porto deste Portugal adormecido, travam-se as verdadeiras batalhas pela Europa da Justiça. Nos tribunais nacionais e, em via de recurso, no Tribunal de Justiça da União Europeia, que tem sede no Luxemburgo. 

Feliz produto deste prolongado momento de paz e união na Europa, cujo dia amanhã se celebrará (e desejavelmente por muitos anos) é o Direito da União Europeia, a que Portugal consagra dignidade Constitucional (art. 8º da Constituição da República Portuguesa).

Dele resulta, por exemplo, que "A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de Direito e do respeito pelos Direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres" (art. 2º do Tratado da União Europeia). 

"A União reconhece os direitos, as liberdades e os princípios enunciados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia de 7 de Dezembro de 2000, com as adaptações que lhe foram introduzidas em 12 de Dezembro de 2007, em Estrasburgo, e que tem o mesmo valor jurídico que os Tratados" (art. 6º, nº1, do Tratado da União Europeia).

O título VI da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, sob a epígrafe «Justiça», inclui o artigo 47.°, relativo ao «Direito à ação e a um tribunal imparcial», que dispõe o seguinte: “Toda a pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo Direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal nos termos previstos no presente artigo. Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial".

Os políticos e os jornalistas parecem ignorá-lo, mas as batalhas por uma Justiça independente e imparcial na Europa sucedem-se quotidianamente - parece impossível, mas ainda hoje. 

Fica aqui o meu tributo aos advogados europeus que são dignos da profissão, tão nobre quanto enxovalhada - por aqueles, alguns dos quais juízes, a quem não serve a Europa da Justiça independente e imparcial.

Luis Miguel Novais

sábado, 1 de maio de 2021

Getting lost, or not

A Field Guide to Getting Lost, de Rebecca Solnit, veio ter comigo esta semana, em língua inglesa. E ainda bem. Desconheço se existe tradução em língua portuguesa (na Porbase só encontrei dois títulos desta autora, e nenhum deles se parece). O ainda bem tem uma explicação. Um mau tradutor, por exemplo um bot, teria traduzido o título por "Um Guia de Campo para se Perder" (a sério, experimentei no Google Tradutor e foi o que deu), e teria perdido todo o sentido.

A Field Guide to Getting Lost é tudo menos um daqueles cadernos repetidos do jornal Expresso relativos a Boa Cama, Boa Mesa, Caminhadas e quejandos. Na realidade, parece-se (a mim pareceu-me) com o meu Virados para a Lua (esgotado, mas requisitável, por quem ainda não tiver tido ocasião de ler, na excelente rede de bibliotecas públicas deste Portugal adormecido - ver aqui)

Claro que, não tendo eu escrito em língua inglesa, não dispus do mesmo arsenal de imprensa de que, justamente, dispôs Rebecca Solnit: "Wonderful" disse The Times, "Brilliant", disse The Guardian, "Wondrous", disse o Los Angeles Times, e por aí fora - estou a citar da badana, com alguma inveja, claro, sem deixar de amar a minha difícil língua mãe.

O que mais impressiona nos livros que esvoaçam e vêm parar às nossas mãos como que por acaso é que, pelo menos aparentemente, trazem-nos mensagens. Eventualmente, dos anjos que falam connosco por meio dos livros.

Este trouxe-me a seguinte citação de uma frase de 1817 de John Keats, que desconhecia e me impressionou: "what quality went to form a Man of Achievement, especially in Literature... I mean Negative Capability, that is, when a man is capable of being in uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason".

Na minha tradução: "qualidade que passou a enformar um Homem de Realização, principalmente na Literatura... Refiro-me à Capacidade Negativa, isto é, quando um homem é capaz de permanecer em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer irritante de ir atrás de facto e razão".

Confesso que tem sido este irritante que me tem impedido de publicar livros desde A Janela do Cardeal, desde 2010. Tanto Natal com Pombal, como Princesa Rei, são títulos já registados no IGAC, livros praticamente acabados. Lindos, acho eu. Mas irritantes, em termos literários - dizia Keats e aproveita Solnit na sua deambulação pelos campos da literatura. Irritantes porque, descobri agora, agarrados a facto e razão.

Pudera, são "romances históricos". Daquele género literário que exerceram notavelmente, por exemplo, os evangelistas Marcos, Lucas e João (admitindo que Mateus, ao contrário destes, presenciou os factos, acompanhando Jesus). Daquele género literário que implica uma reconstituição do facto histórico por quem não o viveu. O que tem de ser irritante, ou não.

Luis Miguel Novais

domingo, 25 de abril de 2021

Abril mil

Ao ler o Gigante Enterrado (cujo título me recorda este Portugal Adormecido), de Kazuo Ishiguro, não pude deixar de associar a falta que a vela fazia à protagonista que vivia numa caverna, àquela outra vela da caverna de Platão, a mesma que nos permite ver as sombras da realidade que tomamos pela aparência. À medida que a revolução de 25 de abril de 1974 se afasta no tempo, somos menos aqueles que a vivemos em carne e osso.

Quando veio a revolução, tinha eu dez anos, fomos mandados da escola para casa. Recordo depois os estores fechados em pleno dia, as imagens escassas, tremeluzentes e a preto e branco, de uma realidade coada pela caverna da televisão. Com o passar do tempo, o novo regime foi-se estabilizando - não sem guerrilhas no liceu que iam da lambada "política" aos constantes confrontos "políticos" entre facções armadas de guarda-chuvas no "recreio".

Este mesmo ano de 2021, em que já temos saudades dos aviões (também um luxo nesses idos de 1974), mais importantes do que os discursos cavernícolas e as velas, sucedeu-nos algo neste Portugal adormecido que mostra que podemos ter esperança, para lá das cavernas, na democracia plural em sociedade aberta: em plena pandemia, todos mascarados e (afinal) colocando em perigo as nossas próprias vidas, praticamente cinco milhões de portugueses fomos votar nas eleições presidenciais. E a larga maioria optou pela paz. Esta é que é a grande "conquista de abril".

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Fidesputas

O título soa a deselegância. Não passou para os Vocabulários, desde Bluteau, nem para os Dicionários, desde Morais. Mas é expressão bem portuguesa, que todos (excepto, talvez, os bots tradutores), compreendemos bem. Ainda hoje.

"Fidesputas" é expressão em língua portuguesa que vem já em Fernão Lopes, na Crónica de D. João I (cfr. pg.378 do I volume da edição da Editora Livraria Civilização), códice que se encontra, de par com outros importantes documentos, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo de Portugal - esta semana conspurcado pelo ex-primeiro-ministro deste Portugal adormecido, José Sócrates.

Quando iniciei o meu estágio de advocacia, em 1987, o meu patrono ensinou-me aquilo que, ainda hoje, ensino aos meus estagiários: que na Justiça distinguimos entre factos e conclusões. Factos são objecto de prova, conclusões são suposições. 

A distinção resulta fácil com esta anedota (corrente nos meios judiciais):

Estava uma vez um homem a ser julgado pelo crime de injúrias num tribunal. Tinha chamado filho de puta a outro homem, acusava o Ministério Público - a aparente deselegância constitui o facto, com as letras todas. Facto sem o qual não há reato, não há crime (que é a conclusão).

Dada a palavra ao advogado de defesa para alegações, diz este ao tribunal: "concedam que chamar filho de puta a outra pessoa não é necessariamente injúria. Quantas vezes não estou eu sentado nesta bancada a meditar: o filho de puta deste juiz. E claro que não é minha intenção injuriar V.Exa. Pelo contrário, é matéria de admiração. Eu penso: o filho de puta deste juiz é mesmo bom".

Dada a sentença, o homem que chamou filho de puta ao outro vai absolvido do crime de injúrias. Com o recado final do juiz: "agradeça ao filho de puta do seu advogado".

Factos, são factos. Conclusões são como os melões.

Luis Miguel Novais

sábado, 10 de abril de 2021

No meio da ponte

"Como um tolo no meio da ponte" é expressão frequentemente utilizada neste Portugal adormecido. Deve ser como se deve estar a sentir, passada a euforia inicial, o ex-primeiro-ministro de Portugal José Sócrates, a propósito da decisão judicial sobre ele proferida ontem no Tribunal Central de Instrução Criminal.

Como é próprio da minha deontologia profissional como advogado, não me vou pronunciar sobre o trabalho dos meus colegas de profissão, nem sobre o trabalho do Ministério Público - de resto, nem poderia, porque não tenho tempo, nem vontade, para ler os milhares de páginas do processo judicial para poder fazer uma exegese crítica fundada.

Posso, porém, dizer o que me parece que ouvi como cidadão sobre a decisão judicial. Deixando a seguinte declaração bem expressa: sou muito crítico de José Sócrates, o péssimo primeiro-ministro que nos governou entre 2005 e 2011, tendo-nos legado um buraco de dívida em forma de resgate de 78 mil milhões de euros (comparar com a "bazuca" atual de 16 mil milhões de euros). 

Esta minha opinião política, não me impede, porém, de pugnar pela separação das águas entre política e justiça - conhecedor, como sou, de santos que cometem deslizes, e canalhas inocentes em casos concretos, não aprecio os julgamentos de carácter por telejornal, mais próprios das idas épocas dos pelourinhos e não de sociedades civilizadas com tribunais imparciais.

Do que ouvi, concluo que o juiz de instrução Ivo Rosa fez um trabalho inteligente de análise cuidada do processo, tendo concluído que José Sócrates foi corrompido, lavou dinheiro e falsificou documentos. Talvez por ser madeirense, o juiz utilizou uma técnica transatlântica bem conhecida, utilizada já com Al Capone: na impossibilidade de poder provar a mafiosidade, assentou a acusação sobre a lavandaria, e leva-o a julgamento por aquilo que o próprio José Sócrates admite: que recebeu mais de um milhão de euros do seu amigo que, aparentemente, recebeu o dinheiro dos putativos corruptores.

O tolo do meio da ponte de Amarante de Teixeira de Pascoais, não era juiz.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 2 de abril de 2021

Prece ao Filho do Homem

 

Rezamos ao Pai Nosso, ao Anjo da Guarda, a Santa Maria e, que eu conheça, não temos uma prece dirigida diretamente ao Filho de Deus. 

 

O anjo que falava comigo ditou-me esta:

 

Jesus Cristo crucificado e ressuscitado,

no Céu à direita do Pai sentado,

advogai por nós.



sábado, 27 de março de 2021

Boa Esperança

O atravancamento do Canal do Suez por um enorme navio, esta semana, veio recordar ao mundo a rota marítima alternativa pelo Cabo da Boa Esperança, descoberta pelo português Bartolomeu Dias de Novais.

O Novais não é gralha; normalmente o ilustre navegador vem referenciado sem este apelido meu homónimo, mas usaram-no seus filhos e seu neto - o também explorador e fundador de Luanda e primeiro capitão-governador de Angola, Paulo Dias de Novais. Desconheço se são meus antepassados. De resto, o apelido vem já de antes, surge nos primeiros textos em língua portuguesa, no tempo de D. Dinis, com a grafia "nouaes".

Nesta semana que vem, há cerca de dois mil e vinte e um anos, o Filho de Deus preparou-se para ser morto e ressuscitar, dizendo, segundo escreveu na Bíblia um dos Doze: "Eu vos digo: de hoje em diante não beberei deste produto da videira, até ao dia em que beberei o vinho novo convosco no reino de meu Pai" (Mateus 26:29). 

No fim do cabo dos trabalhos, há Boa Esperança.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 19 de março de 2021

A riveder le stelle

O título vem da homenagem a Dante, pelos 700 anos da sua morte, feita pelo museu das Gallerie degli Uffizi de Florença (onde tive a felicidade de viver há cerca de 30 anos) . Com o museu fechado, está online aqui. Vale a pena televisitar. Mas não é esse o tema.

"A riveder le stelle" é a bela frase que Dante emprega na sua Divina Comédia precisamente quando sai do Inferno: "E quindi uscimmo a riveder le stelle". Na respeitável tradução para língua portuguesa de Vasco Graça Moura (in A Divina Comédia de Dante Aligheri, Bertrand, 5ª edição, 2000): "e saímos voltando a ver estrelas". Na minha tradução: "foi quando saímos e voltámos a ver as estrelas".

É que a Maçonaria, a Opus Dei e outras invisíveis correntes deste Portugal adormecido têm de sair do Inferno de Dante. Sob pena de nos infernizarem a vida. Trata-se de obediências, milícias, constituídas por grupos de pessoas que integram hierarquias e pagam dízimo. São constituídas por pessoas que se querem de bem. Mas são militantes.

Sei do que falo, não por integrar alguma (que não integro), mas porque tenho amigos em ambas. Pelo meu escritório de advocacia até já passou uma pessoa cuja mãe integrava a Opus Dei e o pai a Maçonaria. Não duvido da con-vivência. Nem da bondade. Mas já senti, por mais de uma vez, a canelada ou cotovelada disfarçadas, e nas orelhas o frio da ostracização, da não pertença, do não ser "cá dos nossos".

As estrelas de que fala Dante (e que me levam, respeitosamente, a discordar da tradução de Vasco Graça Moura, um grande escritor português) são as quatro virtudes cardeais: a Justiça, a Força, a Prudência e a Temperança. Di-lo Dante, já no Purgatório. A caminho da Democracia.

Luis Miguel Novais

sábado, 13 de março de 2021

Flu

O meu primeiro professor de inglês era um português da Índia, de turbante no Porto. Um dia, que ainda recordo, virou-se para mim e disse: "Já por cá não o vemos há uma semana. Onde esteve?". Respondi-lhe: "Estive com a gripe". "E quem é essa senhora?", respondeu-me.

Desde que a humanidade se mancomunou para criar e desenvolver línguas, pelos tempos de Babel, a comunicação não tem sido fácil. Mas "as coisas são", para lá de como se dizem. O Senhor Presidente da República deste Portugal adormecido lá o sabe: primeiras visitas oficiais de Estado, esta semana, apenas empossado para um segundo mandato: Vaticano e Espanha. Por esta ordem. Porque as coisas são.

Daí ter-me ocorrido que na língua inglesa, ainda hoje, o meu antigo professor de inglês se referirà à gripe com o neutro flu. Abreviatura de influenza, o vírus da chamada gripe espanhola, com que morreu a minha bisavó Aurora e tantos milhões mais com ela. E que ainda hoje anda por aí, com variantes, há mais de um século. Como deverá vir a suceder com este agora do/da covid (com quem ainda não estive, felizmente).

Luis Miguel Novais

sábado, 6 de março de 2021

Terra de Abraão

A visita do Papa Francisco ao Iraque traz à ribalta o ilustre desconhecido Abraão, o ancião da Bíblia respeitado por cristãos, judeus e muçulmanos. 

Em linha temporal, Abraão viveu cerca de dois mil anos antes de Jesus Cristo, há cerca de 4000 anos. A Bíblia narra a sua conturbada vida de escolhido peregrino, da sua Ur natal (hoje, Iraque), à Terra Prometida. Da clássica Mesopotâmia (entre os rios Tigre e Eufrates), à alargada (entre os rios Eufrates e Nilo, primeiro, ao globo entretanto).

Abraão teve o seu primeiro filho fora do casamento: Ismael (tradicional progenitor do povo islâmico). Porém, segundo o Génesis, aos 100 anos Abraão teve em Sara, sua legítima mulher estéril, ela de 90 anos de idade, outro filho: Isaac (segundo patriarca do antigo Israel e tradicional exemplo de conciliador). Teve mais descendência e ainda viveu até aos 175 anos de idade.

Outros tempos. Em que também se observava que "os seus juízes são como lobos à tarde, que não comeram nada desde a manhã" (Sofonias 3:3).

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Costa Concordia

Qual bodo aos pobres, este Portugal adormecido vai receber dos parceiros da União Europeia um suplemento vitamínico de cerca de 16 mil milhões de euros. O Senhor Primeiro-ministro chama-lhe "bazuca" de desenvolvimento. Será?

Portugal está no top 3 dos países mais endividados da União Europeia. Mandaria o bom-senso utilizar, ao menos, parte desse dinheiro para abater à dívida. Ou, na pior das hipóteses, utilizá-lo todo como investimento reprodutivo. Em nenhuma das boas hipóteses, utilizá-lo para criar mais despesa pública.

Mas afinal como irá ser gasto esse dinheiro dado? Ainda não sabemos. O Senhor Ministro do Planeamento disse esta semana que não há plano (afinal, que estará a fazer no Governo?). Um Plano de Recuperação e Resiliência encomendado pelo Governo (em consulta pública) diz que cerca de mais de dois terços vão ser gastos a criar mais despesa pública, e apenas cerca de um terço em investimento reprodutivo; nada em abater à dívida. Será?

Em Itália, que do mesmo modo e pelos mesmos motivos irá receber um bodo (não de cerca de 16 mas de cerca de 200 mil milhões de euros), entrou em funções como primeiro-ministro Mario Draghi - como todos sabemos, o salvador do euro e, por conseguinte também, deste Portugal adormecido. Que já disse como vai gastá-los: a enfrentar os problemas estruturais patológicos da economia do seu país. Essencialmente: uma dívida enorme e tribunais que não funcionam em tempo útil.

Bem sei que a diferença de montantes é enorme. Mas pergunto-me porque não imitamos o plano de Mario Draghi. Para não acabarmos como o Costa Concordia.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Maldita cocaína

O título é emprestado a um filme sul-americano de 2001. A atualidade deve-se à surpreendente notícia da apreensão no Brasil de 500 quilos de cocaína num táxi-aéreo de bandeira portuguesa onde viajava o meu amigo e ex-sócio João Loureiro, que ganhou notoriedade como presidente do Boavista Futebol Clube.

Este João Loureiro (há outro na minha vida, o meu genro homónimo, médico-dentista e sem relação familiar com aquele) e eu conhecemo-nos muito novos, aos dezassete anos, quando entrámos precocemente no curso de Direito do Porto da Universidade Católica Portuguesa. Ficámos muitíssimo amigos. Uniu-nos, sobretudo, o comum amor à música. Que nos levou ao concerto dos Clash em Cascais e depois, quais Lennon-McCartney, a fazermos muitas coisas juntos que, sem quebra de modéstia, ilustram a cultura portuguesa - estou a pensar, por exemplo, no Confidências do Exílio, nos Ciclos de Novo Rock, ou no álbum Surrealizar dos Ban (em que participo como músico convidado e autor da letra do Encontro com Mr Hyde).

Terminado o curso de Direito, acabámos sócios em diversas coisas, na advocacia mas também em negócios nacionais e internacionais. Mantendo cada um a sua própria vida autónoma, porém - como sempre resultaria das nossas personalidades. Como se costuma dizer, não cabem dois galos no mesmo poleiro, e lá nos ajustámos, cada um para o seu lado. A minha personalidade mais racionalista levava-me (leva-me) a dar um passo em frente perante uma situação nova; a sua personalidade mais emocional levava-o (leva-o?) a dar três passos em frente perante uma situação nova; encontrávamo-nos nos dois passos em frente, onde estávamos ambos melhor: eu mais destemido do que me seria normal, ele mais seguro do que lhe seria normal. Funcionámos bem.

Até que houve um afastar de interesses: o João dedicou-se ao futebol, assunto que me distrai menos do que um bom concerto de rock. A nossa separação foi sobretudo cultural. Recordo até o momento concreto em que ocorreu: David Sylvian (o meu músico favorito) veio tocar ao Porto, e lá estivemos eu, minha mulher e a mulher do João na primeira fila do Coliseu. Separados por uma cadeira vazia, a do João, que não apareceu sequer para levantar o bilhete que lhe deixei na portaria.

A vida separou-nos. Quando o João foi implicado no caso de corrupção desportiva conhecido por Apito Dourado telefonou-me meu falecido pai muito aflito por mim, para saber se eu também tinha relação com o assunto. Nem a meu pai tinha então eu dito que o João e eu já não falávamos, sequer, há mais de dois anos. Que sossegasse, que não estava implicado. Acabei por defender o João como advogado nos vinte processos judiciais criminais em que acabou implicado no Apito Dourado. Foi absolvido em todos.

Vi o João pela última vez em 2018, por ocasião de um jantar de curso. Desde então, só falámos quando teve a amabilidade de me convidar para o casamento de uma sua filha, em 2019, ao qual eu não pude assistir por ter sido operado com sucesso à vesícula na mesma altura.

Estou perplexo com o sucedido. Não falámos há demasiado tempo. Custa-me muito a crer que o João esteja relacionado com tráfico de droga. Inocente ou culpado, desejo porém que regresse quanto antes a Portugal. Onde, se for o caso, deverá ser julgado - já que, segundo os princípios de direito internacional bem assentes, a bandeira da aeronave define a competência territorial do tribunal.

Luis Miguel Novais

domingo, 14 de fevereiro de 2021

Manipulus

A páginas tantas de A Janela do Cardeal dei por mim a pôr no pensamento do protagonista os ambíguos sentidos que, já no Renascimento, assumira a palavra latina manipulus, que veio a dar manípulo em língua portuguesa. Esta semana, ocorreram-me mais alguns:

- Nos Estados Unidos da América fez-se um julgamento político de um ex-presidente; "julgamento" que viola alguns bons princípios assentes já, pelo menos, desde o tempo dos velhos romanos. Como é bem sabido (embora, aparentemente, nem por todos), "Justiça" faz-se com juízes imparciais, não com pseudo-juízes políticos, no impropriamente chamado "tribunal da opinião pública" - que só pode querer referir-se ao escurinho das urnas, quando todos, e não apenas os manipuladores, somos juízes. Resultado: os advogados do ex-presidente absolvido no tribunal político vão agora poder gozar fartamente com o também consolidado princípio de ne bis in idem - que impedirá o dito ex-presidente de ser julgado duas vezes pelos mesmos factos. Em bom português, saiu pior a emenda do que o soneto.

- Na Birmânia (vulgo Myanmar) joga-se à propaganda: mais de vinte mil pessoas foram presas e agora libertadas por delito de opinião na sequência de urnas e subsequente golpe militar. Enquanto a manipulação informativa se joga nas redes sociais. Com o picante adicional de uma das donas das plataformas (o Facebook que, pois bem, manipula o conteúdo) ter vindo agora dizer que "limita a distribuição" de posts segundo a sua própria vontade. O que terá de vir a fazer-nos reflectir sobre regras firmes para que a Democracia não seja manipulada, além dos pseudo-tribunais e outros generais, agora também pelas redes sociais.

- Na Fortuna (vulgo dinheiro), três marcas reputadas (Mastercard, BNYM, Tesla) vieram declarar a sua aposta numa moeda privada (Bitcoin) que mais se parece com um jogo de fortuna e azar, porque não tem qualquer tipo de contrapartida ou tender (palavra em língua inglesa igualmente ambígua e que, no caso, não quer dizer macio - informação que deixo aos bots tradutores). Bitcoin transporta-nos ao sistema de conchinhas que alguns dos nossos antepassados neste Portugal adormecido usavam em vez de um sistema de moeda e crédito; e não há muito tempo - por exemplo, em Vilarinho das Furnas, nas montanhas do Gerês, ainda se usavam as conchinhas nos anos 70 do século 20, quando uma barragem afundou de vez a aldeia. Chamar-lhe dinheiro, com a seriedade institucional que agora lhe conferem estas marcas, se não é ignorância, só me ocorre que possa ser manipulação... de conchinhas.

E assim se passou mais uma enriquecedora semana para alguns dos praticantes de novas variantes do velho vírus manipulus.

Luis Miguel Novais