Riqueza, civilização e prosperidade nacional

sábado, 5 de dezembro de 2020

Bodybot

A primeira vez que falei frequentemente com um carro foi já no século passado. Na realidade, no milénio passado. 

Foi em 1999, quando me ofereci um novinho em folha Jaguar S Type - tão diferente e acabado de estrear que, nos primeiros tempos em que andava nele, me sentia como se deve sentir um peixe num aquário muito observado. 

Falávamos em inglês, o carro respondia-me em voz feminina. E dizia já uma série de coisas que pareciam inteligentes, relacionadas com o rádio, o aquecimento, a navegação e pouco mais. Para o que importa: obedecia aos comandos da minha voz.

Um dia cansei-me. Desliguei o sistema de comando pela voz, voltei a usar as mãos. Não me apeteceu mais falar com o carro. Não me apeteceu mais que me obedecesse com aquela voz feminina simpática que dizia sempre que estava ao meu serviço, de um modo servil, esclavagista.

Bem sei que era apenas um carro, um computador de bordo, um bot. Mas não me apeteceu, pronto. Nunca gostei de subserviências. Amo a liberdade. E deve ter sido isso que acabou por me incomodar. Não aprecio bajuladores.

Esta semana, o mesmo Reino Unido da Grã-Bretanha de onde me viera o magnífico Jaguar apressou-se a aprovar e mandar distribuir pela sua população vacinas de prevenção contra o actual coronavírus. Que são tão inovadoras como foi, na altura, o meu Jaguar S Type.

As novas vacinas de mRNA (messenger ribonucleic acid, ou mensageiro ácido ribonucleico) enviam mensagens aos corpos humanos. Um dos seus fabricantes já descreveu a sua vacina como software para o corpo. Compreendo o potencial. Mas não sei se gosto.

A possibilidade de erradicarmos as doenças é fantástica. Mas a ideia de nos transformarmos em bodybot... se tudo correr bem, há de ter o destino que teve a voz do meu Jaguar.

Luis Miguel Novais