Ao ler o Gigante Enterrado (cujo título me recorda este Portugal Adormecido), de Kazuo Ishiguro, não pude deixar de associar a falta que a vela fazia à protagonista que vivia numa caverna, àquela outra vela da caverna de Platão, a mesma que nos permite ver as sombras da realidade que tomamos pela aparência. À medida que a revolução de 25 de abril de 1974 se afasta no tempo, somos menos aqueles que a vivemos em carne e osso.
Quando veio a revolução, tinha eu dez anos, fomos mandados da escola para casa. Recordo depois os estores fechados em pleno dia, as imagens escassas, tremeluzentes e a preto e branco, de uma realidade coada pela caverna da televisão. Com o passar do tempo, o novo regime foi-se estabilizando - não sem guerrilhas no liceu que iam da lambada "política" aos constantes confrontos "políticos" entre facções armadas de guarda-chuvas no "recreio".
Este mesmo ano de 2021, em que já temos saudades dos aviões (também um luxo nesses idos de 1974), mais importantes do que os discursos cavernícolas e as velas, sucedeu-nos algo neste Portugal adormecido que mostra que podemos ter esperança, para lá das cavernas, na democracia plural em sociedade aberta: em plena pandemia, todos mascarados e (afinal) colocando em perigo as nossas próprias vidas, praticamente cinco milhões de portugueses fomos votar nas eleições presidenciais. E a larga maioria optou pela paz. Esta é que é a grande "conquista de abril".
Luis Miguel Novais