Portugal Adormecido

Riqueza, civilização e prosperidade nacional

domingo, 29 de junho de 2025

O Acórdeão

O Partido Socialista (PS) deste Portugal adormecido é hoje uma confederação de três facções: Soaristas (sucessores do falecido ex-Presidente da República Mário Soares); Sampaistas (sucessores do falecido ex-Presidente da República Jorge Sampaio); e Jacobinistas (liderados pelo aspirante a Presidente da República Augusto Santos Silva). Assim tribal, à Guerra dos Tronos - correndo invisíveis correntes maçónicas respetivas, nem sempre nas mesmas missas.

Nas penúltimas eleições internas, Soaristas e Sampaistas haviam-se coligado para derrotar os Jacobinistas.  Os dois primeiros, fizeram então eleger o, entretanto caído em desgraça, secretário-geral Pedro Nuno Santos - que obtivera cerca de dois terços, derrotando o "rapaz do acórdeão", que obteve o outro terço. Quem assim chama a José Luís Carneiro não sou eu, é o mesmo Jornal de Notícias de hoje que patrocina as Tertúlias à Moda do Porto de Augusto Santos Silva (integráveis na sua pré-campanha presidencial). E eu aqui acompanho esse jornal porque, pelo perfil que dele traçam, troviscando nas várias tribos durante o seu percurso (ora com Assis, ora com Seguro, ora com Costa, ora com Silva...), vindo do acórdeão de Baião, toca muito bem o pisca-pisca.

José Luís Carneiro logrou agora atingir a vitória com cerca de metade do partido. Com o apoio de Jacobinistas (sua casa de partida) e parte dos Soaristas (conforme resultou da declaração do próprio João Soares). Não tendo, porém, logrado obter sequer os dois terços que assim lhe caberiam. Honni soit...

Luis Miguel Novais 

P.S. (em latim) : no próximo sábado, 5 de julho de 2025, pelas 17 horas, na Casa Comum da Reitoria da Universidade do Porto, comemoraremos os 40 anos do Confidências do Exílio. Apareça.

quarta-feira, 25 de junho de 2025

A big day for Nato

Quando conheci pessoalmente o atual presidente Donald Trump, já ele era uma estrela mediática, uma super-estrela fascinante (o jornal Expresso até fez disso capa no suplemento de Economia). Falo de 1999, quando fui advogado internacional de empresas dele nos Estados Unidos da América (EUA). A sua energia continua contagiante (e inspiradora, considerando a sua idade atual, 79 anos), passado mais de um quarto de século (tinha ele 54 anos e eu 36 quando nos cruzámos então). Digo isto porque assisti em direto pela televisão, com natural interesse e expetativa, à conferência de imprensa que acaba de dar a partir de Haia, Países Baixos, no final da Cimeira da Nato (Organização do Tratado do Atlântico Norte), de há momentos. Na sua qualidade de Comandante Supremo dos EUA... e da Nato.

Ontem, antes de me deitar, trocava mensagens com um jovem amigo também natural deste Portugal adormecido. Naturalmente preocupados com a possibilidade de uma guerra que nos envolva, e a propósito do meu texto de ontem, Maria vai com a Nato. O qual, que de algum modo, completa aquele outro de 4 de março de 2025, Portugal em Paz. "Já tinha pensado, em caso de guerra o melhor era mesmo ser neutro...", dizia o meu jovem intelectual amigo, "mas estando na Nato é difícil e mais difícil deve ser sair da Nato". Se não assumirmos uma posição acabaremos a comprar armas ao estrangeiro - respondi eu -. Como sabes, estive a administrar a holding das indústrias da Defesa, pelo que sei do que falo: não temos nada para vender (a não ser botas e fardas). Mas é possível Portugal ser neutro, mesmo com o artigo 5º da Nato? - perguntou o meu amigo. Para sermos neutros temos de sair da Nato - respondi -. O que não significa mais do que ficarmos a par com a Suíça. E a Irlanda. E a Áustria. Qualquer um dos quais países é mais rico em Produto Interno Bruto - continuei, para completar: para ficarmos na Nato passamos a protetorado. 

O título é dele, do Trump Show: "a big day for Nato".

Luis Miguel Novais

terça-feira, 24 de junho de 2025

Maria vai com a Nato

Estive, como convidado, na Cimeira da Nato de Lisboa em 2010. A meu lado estava, por exemplo, José Luís Carneiro (atual líder do Partido Socialista). Apertámos brevemente as mãos de Barack Obama e Vladimir Putin. Sim, em 2010 a Rússia foi convidada para a Cimeira da Nato.

Salazar, que tinha imensos defeitos mas logrou não nos envolver como beligerantes na II Guerra Mundial, foi "forçado" pelos Estados Unidos da América (EUA) a integrar, como membro fundador, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Nato). Como resulta dos seus papéis (hoje publicados em A Diplomacia de Salazar, de Bernardo Futscher Pereira, 2012), Salazar desprezava os norte-americanos. Precisamente pela política de America First. Nem a Base das Lajes lhes cedeu: foi cedida aos ingleses em 1943, no quadro da Velha Aliança. Foi pela mão destes, e a nossa presença "forçada" na Nato (que permitiu a Salazar manter no poder o seu regime caduco e anti-democrático), que os EUA desenvolveram a Base das Lajes naquilo que hoje é: um porta-aviões (seja de reabastecimento) no meio do Atlântico Norte.

Salazar ficou também conhecido por ser governado pela sua Maria. A sombra desta permanece, como no velho ditado de que Maria vai com as outras. Este Portugal adormecido, em vez de se atar às compras desenfreadas de material militar estrangeiro, não deveria parar para pensar por qual motivo países do nosso tamanho e  membros da União Europeia, como a Irlanda e a Áustria, não integram a Nato? Para que serve o Presidente da República? Onde está, hoje?

Luis Miguel Novais

domingo, 22 de junho de 2025

Sheriff Trump

O mundo mudou (outra vez) esta madrugada. Como de costume, ainda não nos apercebemos bem das consequências da mudança - ninguém prevê o futuro. Mas os Estados Unidos da América (EUA) apresentaram, há momentos, um mapa da sua Operação Midnight Hammer contra o Irão. Mapa que faz com que qualquer pessoa minimamente esclarecida sobre questões de segurança e direito internacional, dos BRIC aos NATO e demais, compreenda que esta é uma das mudanças pivotais.

Em termos de segurança internacional, a utilização pela primeira vez em combate dos aviões B2, voados do meio dos Estados Unidos da América, através do Atlântico e do Mediterrâneo, invisíveis, reabastecidos em voo, carregados de bombas destruidoras dos bunkers mais profundos, e regressados ao Missouri, intactos, não é apenas uma novidade. É uma grande mudança. A partir de hoje, qualquer potência, mais ou menos bem intencionada, na realidade qualquer um de nós, pensará que, a partir de casa, sem necessidade de bases externas ou autorizações de aliados, os EUA não só podem, como fazem cair bombas avassaladoras em qualquer lugar - o que demonstraram para o Atlântico vale também para o Pacífico, porque o mundo é redondo. E à mesma distância do Missouri fica o resto.

Em termos de direito internacional, onde vale o precedente enquanto fonte de Direito (já que ninguém acredita que o Conselho de Segurança das Nações Unidas venha a estabelecer uma Resolução em contrário, que será sempre vetada pelos próprios EUA), o que fica estabelecido, depois da Operação Martelo da Meia-Noite, é que soberano que se sentir ameaçado, sem prévia declaração de guerra, opera cautelarmente ataques em território alheio. Nada, de resto, que o próprio Sheriff Trump I não tivesse já pensado e lançado. Como, de resto, escrevi há praticamente uma década, por exemplo, em 16 de agosto de 2016 (Trump e a Nato), ou em 17 de abril de 2017 (O polícia e os sinaleiros). 

O nosso mundo mudou (outra vez). Ainda bem que o Sheriff não é pelos maus. Embora isto de xerifes...

Luis Miguel Novais

 Post Scriptum: uma clarificação técnica sobre os bombardeiros utilizados é de rigor. No texto refiro-me como B2 ao novo B21. O primeiro, com 35 anos de serviço, já fez vários bombardeamentos e impressionantes longas viagens. Fiquei com a impressão de que utilizaram no Irão, pela primeira vez, o novo. Posso estar enganado. O que não contende com a conclusão política: um ataque destes, voando furtivamente sobre o Atlântico e o Mediterrâneo até ao Índico, e volta, é uma grande mudança, em termos de segurança internacional.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Sansão, hoje

Quem ficou sem olhos em Gaza foi Sansão (Bíblia, Juízes 16:21). Quem está sem olhos em Gaza somos nós, agora.

Será mesmo verdade o que diz a Unicef sobre Gaza: "Com o colapso dos serviços essenciais, as necessidades humanitárias são imensas. As crianças enfrentam fome, doenças e trauma enquanto vivem em condições insustentáveis. Mais de 14.500 crianças mortas, milhares feridas e quase um milhão forçadas a abandonar as suas casas. 17.000 crianças separadas ou não acompanhadas, enfrentando riscos acrescidos de abuso, negligência e trauma. 95% das escolas danificadas ou destruídas, negando educação e um sentido de normalidade. Menos de metade dos hospitais estão funcionais, colocando vidas em risco devido à falta de cuidados médicos".

A ser verdade, os israelitas não têm perdão. Nenhum ser humano pode tratar outro assim. Os fins não justificam a animalidade selvagem, seja de quem for. Para isso, inventámos o Direito. Mesmo sem olhos nem tranças, somos e seremos Sansão.

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Melhor he prevenir, que ser prevenido

Por uma vez (para variar), estou de acordo com Augusto Santos Silva: nenhum dos atuais candidatos a Presidente da República preenche "os requisitos mínimos" (conforme afirmou ontem em entrevista à SIC Notícias).

Claro que estou em desacordo com ele no ataque à posição israelita na guerra com o Irão - que, recorde-se, dura desde 1979 e registou agora uma escalada nuclear desafiante. Em abono do que resta de esperança numa Europa great again, louvo-me na única posição coerente assumida por um líder, Friedrich Merz: Israel "is doing the dirty work for us" (conforme relata a DW).

De um ponto de vista jurídico, a questão do ataque preventivo não se aplicaria também ao desmantelamento de uma rede potencialmente terrorista, ainda sem ataque conhecido? Foi o que ocorreu esta semana neste Portugal adormecido. E bem. 

O título é um adágio do século XVIII (vem no Rolland), entretanto em desuso. Convém recordar.

Luis Miguel Novais

sábado, 14 de junho de 2025

Israelirão

Tudo o que sucede em Gaza não conta já para nós, porque deixou de ser notícia, desde os ataques e contra-ataques bombásticos de ontem, entre Israel e Irão. Israeliraniamos todos, agora.

Para a História, baseada em factos, ficará o alerta de uma agência das Nações Unidas, datado de anteontem: a Agência Internacional de Energia Atómica (supostamente neutral) afirmou que o Irão reforçou a produção de urânio enriquecido, sem garantias de que fosse para fins pacíficos. Justificação, fundamentada, dada por Israel para iniciar um ataque ao Irão, alegadamente em auto-defesa legítima, no quadro do art. 51º da Carta das Nações Unidas, normalmente aplicável aos casos de ataque armado. 

Só o assentar da poeira permitirá concluir quem, realmente, iniciou esta guerra. Lamentável, como todas.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 13 de junho de 2025

Ordenações

Após mais uma manhã de despacho na minha atividade profissional como advogado neste Portugal adormecido, ocorre-me este pensamento que corro a partilhar consigo: precisávamos que o próximo Presidente da República pusesse ordem na poluição legislativa que nos cobre e asfixia. Precisamos de umas novas Ordenações. Essa sim, seria a séria reforma do Estado, no estado em que nos encontramos.

Sendo Portugal agora exclusivamente europeu, continental e insular, já não mais também africano, americano, asiático (como era, quando eu nasci), é chegada a altura de um back to basics. O nem sempre justiçado Marquês de Pombal chamou-lhe Lei de Boa Razão, quando a fez publicar em 18 de agosto de 1769, com a seguinte justificação: "por quanto depois de muitos anos tem sido um dos mais importantes objectos da atenção, e do cuidado de todas as Nações polidas da Europa o de precaverem com sábias providências as interpretações abusivas, que ofendem a Majestade das Leis; desautorizam a reputação dos Magistrados; e tem perplexa a justiça dos Litigantes; de sorte que no Direito, e Domínio dos bens dos Vassalos não possa haver aquela provável certeza, que só pode conservar entre eles o público sossego". 

Antes dele tivéramos, em especial, as Ordenações Afonsinas, Manuelinas, Filipinas... e depois os Códigos, incluindo as Constituições. E, agora, uma série muito enorme de legislação avulsa, contraditória, que favorece sobretudo as corporações dos pequenos poderes, onde se confunde discricionariedade com arbítrio. Onde se não faz respeitar o sossego da liberdade regrada pela lei. Bem faria aquele que lograsse mandar ordenar a atual poluição legislativa.

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Ceyeye

O Portugal adormecido dos factos políticos comemorou hoje solenemente os 40 anos de adesão às Comunidades Europeias, hoje União Europeia. Como cantava então o meu amigo Alexandre Soares, dos GNR, "quero ver Portugal na CEE". E agora, que passaram todos estes anos, vemos o quê?

O eixo franco-alemão continua de rigor. A indústria europeia move-se sob a batuta da Alemanha. A agricultura europeia continua à francesa. A nossa adesão sentou-nos à mesa dos grandes. Mas permanecemos sob tutela - e de mão estendida aos donativos. Vivemos do turismo, e pouco mais.

Estão melhor a Suíça, ou a Noruega. Ambas na Europa mas fora da UEyeye.

Luis Miguel Novais

terça-feira, 10 de junho de 2025

Reler Camões

Estava hoje num Café ao pé de minha casa, neste Porto de Portugal adormecido, e vieram  ter connosco meninos do 4º ano da Escola Básica de Costa Cabral. Esta foi a minha Escola Primária, até 1973. Aí aprovei o exame da 4ª classe (na altura, praticamente o nível máximo de escolaridade para quase todos em Portugal, "Continental e Ultramarino").

Conservo nas paredes da sala de reuniões do meu atual escritório de advocacia os mapas desse Portugal completo onde nasci, em 1963, e que foi assim até 1999 (desmembrado aos pedaços): um país intercontinental, de mais de dois milhões de quilómetros quadrados, de população maioritariamente negra, extra-europeia. Um país que saiu das suas fronteiras europeias por esse mundo fora, pelo tempo de Camões.

Isto pensam vagamente esses meninos, com quem conversei um pouco, a última parte: "Em 2024 celebrámos o V Centenário, data de nascimento, de Luíz Vaz de Camões, que terá ocorrido em 1524, talvez em Lisboa. Estas comemorações prolongam-se até 2026", diz o texto que me entregaram.

Carregavam, cada um, livros de "Os Lusíadas". Nenhum o tinha lido. Perguntei a todos se sabiam qual era a famosa última palavra do épico. Não sabiam. Foram ver. Recordo-me que na idade deles éramos mais "senhorinhos", menos vagos. Fiquei um pouco triste - neste tempo das máquinas é que sabem.

Este nosso Portugal adormecido, tão centralista que agora o então coimbrão Camões também já é lisboeta, pelo menos para os que estudam na minha antiga escola no Porto, está a perder a batalha da identidade. Aquilo que nos distingue não é o período colonial, que começou em 1415 e terminou em 1999.

Se os nossos políticos não se transformassem todos em centralistas lisboetas (começando pelo atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa), teriam uma melhor noção de que Portugal, no seu atual formato, começou muito antes de Camões (e o período que ele representa): é pelo menos, se não quisermos ir mais longe, um fruto do Grande Cisma de 1054.

Voltando ao papel que me distribuíram os meninos da minha antiga Escola Primária: este 10 de junho é "Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas". Embora não pareça.

Luis Miguel Novais

domingo, 8 de junho de 2025

Sem olhos em Gaza

Conheço bem a Bíblia. Mal seria um escritor não conhecer aprofundadamente este livro mágico, religioso, humano e sobre-humano. Composto a muitas mãos, em muitas línguas, durante muitos anos, de Abraão a Jesus, durante um período de cerca de dois mil anos para cada lado, ou seja, cobrindo cerca de 4000 anos de humanidade.

Na Bíblia (vou citar da minha: Paulus 1993, 4ª edição portuguesa, 2000), vêm narradas as várias guerras, já então, em Gaza (ou Azzah). Desde o Pentateuco, no Deuterónimo (possivelmente do século VII a.C.), também chamado projeto de uma nova sociedade (que ironia, já então através da guerra e ocupação violenta do alheio): "Quanto aos Aveus, que habitavam nos campos até Gaza, os Caftorim saíram de Cáftor e exterminaram-nos, habitando depois o seu lugar" (Deuterónimo 2:23). Chegando Gaza aos Livros Proféticos, em Jeremias 25:20 (posterior a 586 a.C.), o livro do vento quente e forte da fidelidade no Direito e na Justiça.

O título deste texto, claro, tomei-o emprestado a Aldous Huxley (Eyeless in Gaza, 1936). Sempre me impressionou. Cegos. Há tantos anos. E não apenas em, mas agora uma vez mais também, em Gaza. Nunca mais aprendemos. Felicidades aos ativistas que desafiam os invasores de Israel e do Hamas no seu pequeno veleiro Madleen a caminho de Gaza. Por cujas velas sopra o vento quente e forte do respeito pela humanidade em paz, nossa condição natural.

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 5 de junho de 2025

Quarta República

A "Quarta República" deste Portugal adormecido saiu ontem da boca para fora do presidente do partido Chega, André Ventura, de novo candidato putativo a Presidente da República Portuguesa.

Depois do "Novo Estado Novo" enunciado pelo candidato Gouveia Melo, o ataque à Terceira República está-se a compor - de resto, por exemplo, a França já vai na quinta. Valerá a pena? Se for para passar por um novo processo revolucionário, não. Certamente, não.

Gouveia Melo terá de o ter vivido, tem idade para isso, é um "retornado". Presumo que não quererá que passemos por outro (sempre doloroso) processo revolucionário. André Ventura, não. Tem o "sangue na guelra", nasceu depois da revolução, não sabe e já disse que não quer saber.

Eu mantenho defesa da atual Constituição da República Portuguesa.

Luis Miguel Novais

segunda-feira, 2 de junho de 2025

O modelo Gabor

A notícia do despedimento coletivo de mais de 200 trabalhadores na fábrica de calçado alemã Gabor, em Silveiros, Barcelos, no norte deste Portugal adormecido, deverá fazer-nos refletir sobre a atualidade com vista ao futuro.

Conheço o calçado Gabor fabricado em Portugal porque é muito bom (sou cliente) e porque se fabrica no terreno que foi de uma quinta de uma minha bisavó, praticamente ao lado do cemitério onde jaz meu pai. Foram já meus avós quem vendeu a quinta, nos anos 80 do século passado. Quando para aqui se transferia parte da produção industrial do norte da Europa, em busca de mão-de-obra boa e barata (fruto da nossa adesão ao mercado comum europeu). Tinha a Gabor Portugal, até agora, cerca de mil trabalhadores, sobretudo mulheres, excelentes. Mas com dois grandes defeitos (de modelo de investimento estrangeiro) que vão tornar doloroso o processo (eventual) de retoma: em primeiro lugar, não é um negócio autónomo, depende totalmente da empresa-mãe na Alemanha (aqui se fabricam, por lá se vendem os sapatos), ou seja, sem margens próprias (provavelmente assente em preços de transferência); em segundo lugar, e não de somenos, são trabalhadores sindicalizados, o que certamente dificultará a redução de remunerações - já de si, infelizmente, assente em salários baixos -, afugentando o capital.

Gostava de poder ajudar. Parece impossível. E não será caso isolado. É aqui que entra o Estado. Um modelo errado?

Luis Miguel Novais

sábado, 31 de maio de 2025

Novo Estado Novo

O candidato a Presidente da República Henrique Gouveia e Melo parece-se cada vez mais com aquele personagem de Peter Sellers no filme político-satírico Being There ou Bem-vindo Mister Chance, de 1979. É penoso estarmos a vê-lo saltar do ecrã para este Portugal adormecido de hoje.

Acabo de ouvir o programa de governo do putativo futuro primeiro-ministro, num governo de iniciativa presidencial, caso Gouveia e Melo viesse a ser eleito Presidente da República. O que, com todas as minhas forças combaterei democraticamente. Não desejo o Estado Novo de Melo Tomás com Rio Salazar a governar. Rui Rio já perdeu as eleições legislativas por mais de uma vez. Não deverá servir-lhe um Mister Chance para atingir o poder que lhe foi negado pelo povo, democraticamente.

Lamento muito este andor político-satírico transportado por algumas maçonarias e misericórdias. Novo ainda é o Estado forte que, na madrugada de 26 de abril de 1974, afirmou o seu discurso legitimador (pelo qual combato também, todos os dias): "limitar o exercício da autoridade à garantia da liberdade dos cidadãos".

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 30 de maio de 2025

Capitão Iglo

Um amigo meu saiu-se com esta: Gouveia e Melo, que ontem lançou a sua candidatura a Presidente da República, parece-se com o Capitão Iglo. Diz que ambos são simpáticos personagens fictícios, produtos do marketing, destinados a vender peixe pouco saudável.

Com o devido respeito, o almirante Gouveia e Melo seria um péssimo Presidente da República. Para além do marketing (grandes meios, desejo que pagos do seu próprio bolso e não por terceiros, como se exige a um independente), não ficou nada da sua apresentação de ontem. Havendo factos notórios que contradizem o seu discurso:

- o aparato montado para a militar operação a que fomos submetidos durante o Covid19, revelou-se totalmente inútil: as vacinas são agora distribuídas nos centros de distribuição normais das mesmas, em especial a enorme rede de farmácias que poderia facilmente ter surtido o mesmo efeito, com muito menos custos para o erário público;

- o novo navio militar porta-drones, pelo almirante tão propagandeado, está a ser construído com dinheiro doado pela "bazuca" do PRR... mas não em Portugal (por exemplo, nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo). Está a ser construído na Roménia;

- a peregrina utilização de um dos nossos submarinos para afrontar a Rússia no Ártico (fora do Atlântico Norte, onde vigora a aliança Nato, Organização do Tratado do Atlântico Norte) foi completamente despropositada e, sabe-se agora, uma censurável manobra inconstitucional (art.275º, nº4) de propaganda com vista à sua candidatura - que confessa já estar a ponderar desde o Covid19.

A eleição deste senhor não manteria Portugal em paz. A quem serviria?

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 29 de maio de 2025

Contar votos, seu palerma

Quando ponderei uma candidatura a Presidente da República tive de pensar em tudo. Literalmente. Inclusive a contagem dos votos. Em bom português, impressionou-me a velha chapelada - de quando os homens ainda usavam chapéu e descarregavam nas urnas os respetivos que cacicavam por aí. Ou seja, manda a prudência considerar que não basta obter votos, ainda é preciso que os mesmos sejam contados em boa fé.

Que ontem recordei, ao observar em direto pela televisão a contagem dos votos dos Portugueses residentes no estrangeiro. Quem são aquelas pessoas que contam os votos num pavilhão?... Porquê em Lisboa?... Em nome de quem decidem quais os votos válidos?... que introduzem em urnas falsas (porque não comportam actos pessoais dos próprios votantes). Que medo. Tantos pequenos ditadores. Potenciais chapeladas, ou como dizia o cómico: "chapéus há muitos, seu palerma".

Que pena. Prefiro rir, mas com natural tristeza.

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 28 de maio de 2025

Quo vadis Ps

Assente que o atual Partido Socialista (PS) deixa de ser, pela primeira vez em 51 anos, um dos dois maiores partidos da III República deste Portugal adormecido, ultrapassado pelo Chega em número de deputados à Assembleia da República, embora (a esta hora) ainda ambos mano a mano em número de votos nas Eleições Legislativas de 2025, não deixa de ser surpreendente que se encontre, desde já, praticamente determinado o seu novo rumo.

E que este novo rumo corresponda à direção da ala famosa por gostar de "malhar na direita", nas palavras do seu afinal (outra vez) futuro (omnipresente invisível) candidato a Presidente da República, Augusto Santos Silva - conhecido mentor de José Luis Carneiro, o secretário-geral imposto à chicotada.

Este novo PS dificilmente não terminará em cisão.

Luis Miguel Novais

terça-feira, 27 de maio de 2025

Tiro no Euro

O ouro, que já não é padrão de nada desde Bretton Woods 1944, subiu de valor no último ano 34,8%. Enquanto o Euro subiu 4,5%. Ambos em relação ao US$ - segundo The Economist, edição de 24 de maio de 2025, pg.77.

Como interpretar, então, as palavras de hoje de Christine Lagarde, a presidente do Banco Central Europeu, responsável pelo Euro? Segundo a qual há uma oportunidade atual: agir para  transformar o Euro de segunda em primeira moeda de troca mundial.

Não é difícil encontrar uma maga resposta: "a palavra é de prata, o silêncio é de ouro".

Luis Miguel Novais

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Os extremos tocam-se

Este Portugal adormecido despertou aturdido de uma surpreendente madrugada eleitoral, com uma vitória clara da Aliança Democrática de Luis Montenegro, outra vitória surpreendente do Chega de André Ventura e uma derrota pesada do Partido Socialista de Pedro Nuno Santos. E mais com este, toda a esquerda (que não subiu, com a excepção quase residual do Livre, beneficiando do varrimento do Bloco de Esquerda). O que quer dizer, na impecável lógica da batata, que os votos que saíram do Partido Socialista voaram na direção dos vencedores.

Uma análise mais fina dos resultados, a todos os títulos surpreendentes, do Partido Socialista: há um ano, contou com 365.507 votos a menos? A Aliança Democrática subiu 140.765 votos, e o Chega subiu 236.778 votos. O que perfaz 377.543 votos. Suficientes para justificar a hipótese de uma transferência do eleitorado que havia votado Partido Socialista para a Aliança Democrática e para o Chega. Mas numa proporção aparentemente surpreendente: mais de metade terão ido para o Chega.

Gosto de adivinhar as invisíveis correntes que se movem na nossa sociedade. Aqui me parece vislumbrar mais uma: a ala radical do Partido Socialista, protagonizada por Augusto Santos Silva e José Luís Carneiro, deu uma golpada, votou no Chega. Não sei, digo eu.

O que não surpreende, atentando na golpada que derrubou António Costa e fez emergir, de imediato, José Luis Carneiro como candidato, entretanto derrotado pelas alas moderadas, em manobra de Master Spinner.

A golpada de ontem produziu resultados já visíveis à superfície: de imediato, rolou a cabeça de Pedro Nuno Santos. A quem fizeram a cama, em que se deitou involuntariamente, com a falta de prudência que lhe é natural.

Cenas dos próximos capítulos deste Macbeth: a tomada do Partido Socialista pela sua ala radical. Se os demais permanecerem adormecidos, claro.

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 15 de maio de 2025

Privilégios dos Deputados

Os chiliques do deputado André Ventura, líder do partido Chega, acompanhados do circo mediático de uma campanha eleitoral dos dias de hoje, têm-nos vindo a mostrar a grande eficácia do Serviço Nacional de Saúde deste Portugal adormecido. Acompanhada por hotelaria de luxo. E segurança de terceiro mundo.

Por 1822, Fernandes Tomás (um dos heróis da Revolução do Porto de 24 de agosto de 1820, que nos trouxe o constitucionalismo correspondente à liberdade regrada pela lei), afirmou o seguinte no mesmo Parlamento onde agora André Ventura é deputado da Nação: "abaixo do rei, somos todos povo". Ao que eu costumo acrescentar: agora que não há rei, somos todos povo.

Nossa Senhora dos ciganos lhes perdoe.

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Almirante III

É oficial: o almirante Henrique Gouveia Melo será candidato às eleições presidenciais de janeiro de 2026. Afirmou-o hoje, de viva voz, à Rádio Renascença. Onde tinha dito, há cerca de um ano, que não o seria, e que consigo..."não é não". Mostrando já sentido de oportunidade de político: aproveita o chilique de ontem de André Ventura e... anuncia a sua candidatura a quatro dias de eleições legislativas, imiscuindo-se no debate partidário. Deixo aos outros o encargo de pensarem quanto isso abone em favor de um presidente moderador.

Ainda recordo de pequenino, na televisão a preto e branco, vestido de branco, o almirante "corta-fitas", Américo Thomaz, Presidente da República. Mais para trás no tempo, antecedeu-o no cargo, nessa mesma ditadura militar, José Mendes Cabeçadas, o primeiro Presidente da II República, na sequência da Revolução de 1926. Almirante maçon. Que tomou o poder do seu antecessor no cargo, último Presidente da I República, Bernardino Machado (outro dirigente da maçonaria).

Seria penoso que a República, hoje uma democracia regrada pela lei (que tanto nos custou a conquistar nestes últimos 51 anos - e é contínua a batalha do dia a dia no sentido de assegurarmos neste Portugal adormecido o Estado de Direito), voltasse a ter um almirante como Presidente. Será Gouveia e Melo maçon? Já disse que não, mas como o seu "não é não"...

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Leão da Paz

É uma grande alegria ter um novo Papa nascido no continente americano: depois do sul-americano Papa Francisco, o norte-americano Papa Leão XIV. A Igreja Católica não pára de inovar na continuidade. Como diz um amigo meu, por algum motivo é a mais antiga instituição do mundo.

Só tenho pena que não seja Papa Tomás. Não pela pessoa, que não é o que importa, mas pelo simbolismo de Santo Tomás de Aquino. Mas adiante. Que o nosso novo Papa é cosmopolita, poliglota, globetrotter, além da herança de Santo Agostinho, a sua Ordem formadora. Mas então Leão. E XIV. Porquê? 

Fui ver (todos, todos, todos) ao monumental "História dos Papas" de Juan María Laboa Gallego (1ª edição em língua portuguesa de 2010, da Esfera dos Livros), do qual passo a citar impressivamente, à procura de uma escolha programática (que é para isso que serve a mudança de nome pelos Papas, um enigma para decifrarmos).

Leão I, foi "O Grande" (magno e santo, do século V): "pertence ao imaginário ocidental o seu encontro com Átila, o terrível chefe dos hunos disposto a conquistar Roma", o que acabou por não fazer, após esse encontro de paz. Bom sinal.

Leão II abalou a crença na infalibilidade dos Papas, criticando arduamente o seu antecessor. "Se um Papa se tinha equivocado em matéria doutrinal, os papas não podiam ser infalíveis". Hum.

Leão III, contemporâneo de Carlos Magno, sofreu um atentado, "tentaram acabar com a sua vida e de facto deixaram-no moribundo na estrada, depois de tentarem tirar-lhe os olhos e cortar-lhe a língua". Sobreviveu ainda a outra conspiração. Mas acabou bem, santo e a ratificar a sucessão do próprio imperador.

Leão IV "fortificou a Basílica de São Pedro e os terrenos circundantes com muralhas e quarenta e quatro torres, espaço que corresponde à atual cidade leonina".

 ...

"A paz esteja com todos vós", palavras de Cristo, que o Papa Leão XIV traz. Com o desejo de que possa vir a dizer que "está no meio de nós".

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Bienvenue Mister Carney

O Canadá é um fascinante enorme país, o segundo maior em área, com uma das dez maiores economias do mundo, onde tenho amigos com quem já trabalhei, mas que ainda não tive oportunidade de visitar. Penso fazê-lo, porém. Sei que tenho tempo. O Canadá não se vai tornar num mero 51º dos Estados Unidos da América. O seu chefe de Estado, Mark Carney, afirmou-o ontem na Casa Branca, polida mas firmemente, declinando o "convite" do presidente Trump.

Na realidade, desde ontem, o Canadá representa a América. Aquela América de que o presidente Trump II se pretende apoderar, ao menos virtualmente. Mas não culturalmente. A América representa para nós, cidadãos do mundo que bordejamos o Oceano Atlântico, uma extensão de uma espécie de expansão multi-secular de uma civilização oriunda (para não ir mais longe) das muito diversas repúblicas (cidades-estado) gregas, onde surge pensada e escrita numa nossa língua a ideia de democracia e liberdade regrada pela lei. Que se expandiu depois para as terras itálica, gálica, britânica e ibérica. Que vieram a dar lugar a impérios e colónias, misturas e novidades, cores e sabores. Um Novo Mundo, a América. Continente ainda hoje nomeado a partir do nome do italiano Américo Vespucci, que esteve ao serviço das navegações dos reinos de Portugal e Espanha; Américo, quando regressou do Brasil, afirmou que aquilo não era Índia, era mesmo América.

Os meus amigos americanos, do sul ao norte, da Argentina ao Canadá, são na sua imensa maioria pessoas que de MAGA não têm nada. Que nunca deixaram de pensar a América como uma grande coisa, expoente da tal expansão civilizacional com mais de 2500 anos, que é a nossa, de todos - europeus, africanos e asiáticos conjugados. América que, entre muitas outras excelentes coisas, desde 1776 até hoje, tem transportado a tocha da democracia e da liberdade regrada pela lei pelo mundo fora. Mantendo as idiossincrasias próprias do multiculturalismo que fez com que, por exemplo, o Novo Testamento fosse escrito em grego. Ou que o Canadá se assuma como poliglota e aberto à imigração, uma monarquia constitucional que já tem um rei, o da Commonwealth.

 A lição de savoir-faire que Carney deu ontem a Trump II tornou a América great, again.

Luis Miguel Novais

terça-feira, 6 de maio de 2025

O limbo europeu

A Alemanha continua a não acertar, infelizmente para a Europa. A escolha de Merz para líder da Alemanha não passou à primeira no parlamento alemão, apesar do acordo de coligação entre os dois maiores partidos do centro (esquerda e direita) apontar para uma maioria.

O que terá acontecido? Quem são os dissidentes? O que quererão afirmar? Ressentimento, falta de confiança em Merz? Seja o que for, este sai enfraquecido. E, com ele, não apenas a Alemanha. Também a Europa. Num momento tão difícil como este, em que atravessamos uma enorme (ainda) subterrânea crise telúrica nos sistemas internacionais de Defesa e Moeda. E em que o fascismo parece querer regressar (via AfD e seus apoiantes MAGA e quejandos).

O limbo alemão é, afinal, europeu.

Luis Miguel Novais

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Don't like mondays

É oficial: o governo do Reino de Espanha já fala, esta segunda-feira, em sabotagem. O Presidente da República Portuguesa, e com ele o Governo deste Portugal adormecido, ainda não tiveram oportunidade de esclarecer-nos.

Pela segunda semana consecutiva, à segunda-feira, algo realmente raro e estranho aconteceu: depois do Apagão geral, agora foram vários comboios do AVE (alta velocidade espanhola) sem circular, porque o sabotador retirou cabos das linhas, em mais do que um local, com um valor sem interesse económico, de não mais de mil euros. Uma assinatura. Uma sabotagem que se parece demasiado com um ataque concertado.

Já lá cantavam, em 1979, os Boomtown Rats sobre um assassino que, uma vez perguntado sobre o móbil, respondeu: I don´t like Mondays. Esperemos que seja só isso.

Luis Miguel Novais

domingo, 4 de maio de 2025

Gambito de Trump

Confesso que passei largo tempo ao lado da série grande êxito da Netflix The Queen's Gambit (numas versões Gambito de Dama, noutras traduções O Gambito da Rainha). Em primeiro lugar porque, embora saiba jogar, o xadrez nunca me atraiu. Em segundo lugar, porque as drogas também não. Finalmente, porque a publicidade não me convenceu. Até ontem, em que a bingei toda. E recomendo.

Fui levado a ver a série por recomendação de Kenneth Rogoff, no final da apresentação do seu novo livro, "Our Dollar, Your Problem", no imperdível podcast de Ezra Klein de há dois dias (que mão amiga me fez chegar e está no youtube): "Trump's Moron Premium". Em que coincidimos no que aqui escrevi há umas semanas (Muralha de Porcelana). Segundo o próprio, a decadência que Rogoff previra para o dólar na próxima década, está "a acontecer em esteroides", graças a Trump II.

Gambito é palavra que integrava já o primeiro dicionário em língua portuguesa (de Morais, cito da edição que possuo, a oitava, de 1891): "no jogo do xadrez: lance em que se sacrifica um peão, para causar perda mais importante ao contrario". Mas também significava já, o que nos serve melhor hoje: "treta para derramar o contrario".

Luis Miguel Novais

sábado, 3 de maio de 2025

Monocular

Da lista de sete Presidentes da República Portuguesa na Terceira República (1974-presente), constam apenas dois advogados de profissão: Mário Soares e Jorge Sampaio. Foram-no ambos por vocação, ou seja por caridade. Naquele sentido católico de disponibilidade para com o próximo, disponibilidade para o outro em sentido cívico, em latim ad vocatus: vocacionado para o outro. Ambos foram, penso que por isso, presidentes presentes.

Mário Soares (de resto, conjuntamente com o seu amigo e depois adversário Salgado Zenha), entregou a cédula profissional na Ordem dos Advogados quando se dedicou à Política (com letra grande, à deus grego). Jorge Sampaio dizia (disse-mo a mim) que, mesmo com a inscrição suspensa por dever de ofício, sempre que tinha de preencher um formulário punha advogado na profissão. Parafraseando Petrarca a propósito da nobreza: advogado non si nasce, si diventa

Tal como nas igrejas institucionais, sumamente na Católica, há regras seculares, consolidadas, no exercício da profissão de advogado. Que, uma vez desrespeitadas, merecem censura (e até mesmo processos disciplinares, com penas que vão até à expulsão do Ordo). A principal das quais é a de colocar os interesses alheios acima dos próprios; ad vocatus.

Sim, bem sei, dito assim parece justificar a conduta de Luis Montenegro. O ainda Primeiro-ministro deste Portugal adormecido que, ao que tudo indica, colocou interesses alheios acima dos próprios. Não o fez como advogado, porém. Porque já não podia exercer, por estar em exercício exclusivo de funções públicas - as quais implicam, segundo a Constituição, neutralidade perante os interesses.

Aquilo que, há séculos, distingue um advogado sem mácula é colocar os interesses alheios acima dos próprios. Mas em prejuízo dos seus próprios interesses.

Não voto em Luis Montenegro, advogado monocular.

Luis Miguel Novais

terça-feira, 29 de abril de 2025

O Apagão do Presidente

"Eu estive no Apagão de 2025", circula nas redes sociais o modelo de uma t-shirt virtual com estes dizeres festivaleiros. Eu também estive, neste Portugal adormecido e bloqueado pelo inacreditável Apagão de ontem, durante mais de oito horas (que não poderia ter durado sequer mais de uma hora, não é?).

Quem parece que não esteve foi o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Noutras (tantas) ocasiões tão visível por toda a comunicação social, de ontem até agora ninguém sabe por anda o senhor, ninguém o vê. Por onde anda? O que faz? No exercício das suas funções, perante tão grave crise nacional, apagou-se. No site oficial da presidência, um comunicado lacónico, datado de ontem, sob título "Falha de Energia Elétrica": "O Presidente da República está a acompanhar a situação em contacto permanente com o Governo".

Gostaria de o ter ouvido dizer de viva voz que, por exemplo, desde 2013, a "interrupção de fornecimento de eletricidade" é por lei considerada uma "contraordenação muito grave". Além de ser uma óbvia falha de segurança, pondo em risco vidas humanas, com possíveis responsabilidades criminais e civis associadas. Além da nossa própria independência individual e nacional, posta em crise. A "Rede Elétrica de Serviço Público" falhou. O "Sistema Elétrico Nacional" colapsou. A culpa vai morrer solteira, Senhor Presidente da República Portuguesa?

Luis Miguel Novais

Post-scriptum de 3 de maio de 2025: o Senhor Presidente da República Portuguesa ressurgiu ontem, volvidos quatro dias sobre o Apagão, e aos costumes disse nada. Com o seu próprio apagão apenas fomenta as teorias de conspiração ou incompetência. Mesmo admitindo que, por estar onde está, saiba mais do que nós, porque não comunica?

sábado, 26 de abril de 2025

Papa Tomás

Agora que o Papa Francisco "adormeceu no Senhor" (para citar as suas próprias belas palavras a outro propósito), cabe à Igreja escolher novo Papa. O nosso Papa. Claro que acreditamos que se trata de uma escolha inspirada no Espírito Santo. Mas não deixa de estar, ao menos formalmente, nas mãos da Assembleia (que é o que quer dizer Igreja), que somos todos nós, os mais de mil e trezentos milhões de baptizados que habitamos esta nossa nave especial que, todos os anos, dá uma volta ao Sol.

Sendo, no dia de hoje, o Vaticano um Estado (observador na Organização das Nações Unidas), tem um chefe de Estado (o Papa) e ministros (os cardeais). Trata-se de uma Aristocracia (na velha divisão de Aristóteles). De facto, mais do que de direito. Se cada um de nós poderia ser Papa, na realidade os ministros do Vaticano escolhem um de entre eles para nos chefiar. Por conseguinte, eu não voto. Mas posso (devo, segundo o Espírito Santo) ter um candidato a Papa. E tenho.

Na carta que há pouco citei, do Papa Francisco, datada de 11 de julho de 2024, quem "adormeceu no Senhor" há 700 anos foi Santo Tomás de Aquino. Nessa mesma carta, em que recorda a "imensa sabedoria espiritual e humana" do "Doutor Angelicus", o Papa Francisco nomeia o prefeito do "Dicastério para as Causas dos Santos", cardeal Marcello Semeraro. O meu candidato a Papa Tomás.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Portugal unido há séculos

A nossa atual Constituição corresponde, grosso modo, ao texto das Cartas de Direitos Civis e Sociais da Organização das Nações Unidas, além de um modo sui generis de organização do poder político - fraccionando poderes em ziguezague, à boa velha maneira do "dividir para reinar". Tem a sua génese há 50 anos. Apesar de longa e pouco legível, é equilibrada, democrática, honorável. Ainda está em muitos pontos por cumprir, neste Portugal adormecido. Mas ainda bem que a temos e podemos lutar, no dia a dia, pela sua execução.

Explicando a um amigo imigrado em Portugal as invisíveis correntes que nos movem ocultamente, como quando olhamos um rio e apenas vemos a água da sua superfície, assinalei-lhe a Igreja (que em Portugal quer dizer maioritariamente Católica, ela própria com diversas Ordens), e a Maçonaria (tradicionalmente ramificada às Inglesa e Francesa, cujos caminhos também vão dar a Roma). Ambos templos com muitas salas. E muito presentes nos pequenos grandes poderes públicos, das escolas às universidades, dos hospitais aos tribunais, da RTP aos partidos, por todo o lado. Invisíveis correntes deste rio à margem do qual nos sentamos (a maior parte do tempo meramente a observar), os independentes. Aqueles que, na realidade, decidimos as eleições. Nas quais participamos mesmo sabendo que uma grande parte do Estado se encontra capturado, do mero pistolão à feia corrupção, porque "anda meio mundo a tentar enganar o outro meio". Ainda vale muito a pena o sufrágio eleitoral e a limitação dos mandatos de autoridade. Pelo que, tudo somado, é dia de comemorar e oferecer um viva à Constituição da República Portuguesa!

Também disse ao meu amigo (que aqui vive por sermos, para ele e demais legalmente isentos de Imposto sobre o Rendimento de Pessoas Singulares, a Florida da Europa) que neste nosso jardim solarengo e de bons ventos, aquilo que nos deixa unidos há séculos é uma elevada frase batida e também proferida pelos revolucionários na madrugada de 26 de abril de 1974: "limitar o exercício da autoridade à garantia da liberdade dos cidadãos".

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 23 de abril de 2025

Muralha de Porcelana

Vivemos (mais uns) dias extraordinários nesta nossa nave especial. A The Economist chamou à sua capa o Grito de Munch, com razão. Um grito silencioso, mas visível, impactante. Um abalo telúrico no sistema monetário internacional como o conhecemos até aqui, desde os Acordos de Bretton Woods, de 1944. Aqueles que deixaram de reconhecer o padrão-ouro, erigiram (na prática) o dólar americano em moeda de troca internacional, criaram o Banco Mundial e ainda o Fundo Monetário Internacional. Em que assentámos, nos últimos 81 anos.

Estive de acordo com o sistema económico do presidente Trump I (2017-2021). Estou em total desacordo com o sistema económico do I love tariffs e drill baby drill do presidente Trump II (2025-?). Penso que ele próprio, agora, também. A criação de uma espécie de Muralha da China virtual na América, com o sistema tarifário hiperbólico, levou a uma reação brilhante da China: em lugar de responder com a mesma moeda, minou o próprio sistema monetário de Bretton Woods, oferecendo aos de fora da nova Muralha da América o Yuan Digital, para substituir o bom velho Dólar nas transações internacionais.

Não é nada que a China não tivesse tentado antes. Mas agora doeu. Como se começa a notar, com o recuo de Trump II. A ver se ainda a tempo de deixar intacta a boa velha porcelana herdada.

Luis Miguel Novais

segunda-feira, 21 de abril de 2025

Francisco da Paz

Deus, que na sua suprema glória domina a álea que inclui a morte terrena, fez passar à vida eterna o Papa Francisco nesta Pascoela. Foi um bom Papa, de "todos, todos, todos".

Suprema ironia divina foi ter sucedido a um Papa que deixou reflexão e obra escrita sobre a inadequação atual da comunicação sobre a vida eterna, como coisa pesada, tendo afinal tomado consciência de que haveria por isso de lhe suceder, ainda em vida, um Papa que cumprisse aquela extraordinária mensagem de Jesus (em Mateus): "lanço-vos no meio dos lobos; sejam prudentes, como serpentes; e simples, como pombas".

Suprema sabedoria divina foi, pois, o Papa Francisco ter recebido em sopro final um lobo labrego (hillbilly assumido e felizmente convertido) com poder para destruir o mundo como o conhecemos, substituindo-o por outro ainda pior. Foi prudente.

Que a terra lhe seja leve. A Terra o recordará, como pomba branca da paz.

Luis Miguel Novais

domingo, 20 de abril de 2025

E depois do adeus

O título, todos sabemos, é da canção senha militar do Movimento das Forças Armadas de 25 de abril de 1974, letra de José Niza e música de José Calvário, cantada por Paulo de Carvalho. Vale aqui para depois do meu Ainda é cedo. Uma explicação adicional. Em modo pausa.

A questão das presidenciais e sua importância para este Portugal adormecido, em modo constitucionalismo democrático, além de crucial, tem vindo a ocupar-nos, como sabe. Recordando, para não ir mais longe:

- Em intervenção televisiva no Jornal Diário do Porto Canal de 11 de Abril de 2015, a uma pergunta da jornalista Eduarda Pires sobre a confirmação de António Guterres de que não iria ser um candidato a Belém, respondi que o meu candidato era Marcelo Rebelo de Sousa (ver Marcelo e Eanes); muito antes de Marcelo ter apresentado a sua candidatura, e de ter vindo a ser eleito e reeleito Presidente da República.

-  Aqui neste Portugal Adormecido, em 12 de fevereiro de 2022, escrevi (autocitação de Miguel): "a Marcelo bem poderá vir a suceder Leonor (Beleza) ou António (Barreto), ou outro Português capaz de exercer o Poder Moderador. Até eu, Miguel, que parece que nasci para isso, já que venho a praticá-lo há mais de 35 anos nos Tribunais como na vida" (fim de autocitação).

Com Leonor e Miguel auto-excluídos, do trio só nos resta António Barreto. O meu candidato presidencial.

Luis Miguel Novais

sexta-feira, 18 de abril de 2025

Ainda é cedo, será quando Deus quiser

Sou um convertido ao cristianismo pelo catecismo de São Tomás de Aquino, publicado em Portugal pela Verbo, em tradução, introdução e notas de Duarte Cunha e João César das Neves, sob o título A Luz da Fé. Nasci em famílias tradicionais católicas de há muitas gerações, meus pais baptizaram-me e eu baptizei minhas filhas, tendo casado catolicamente; formei-me na Universidade Católica (que é a minha alma mater, onde leciono). Porém, a dada altura da minha vida, a racionalidade (essa espécie de religião) afastou-me do Pai Nosso, do Credo e quiçá dos Mandamentos (Deus me julgará). Esta súmula/comentário/catecismo de Aquino devolveu-me à religião, pela razão.

Na notável síntese do Pai Nosso da Bíblia, diz São Tomás (na minha leitura da sua própria síntese intemporal), sobre as coisas nesta nossa vida a desejar (bem) e a evitar (mal):

Há quatro coisas a desejar, das quais as três últimas são pedidos nossos a Deus:

1. Glória de Deus - santificado seja o Vosso nome.

2. Vida Eterna - venha a nós o Vosso reino.

3. Justiça - seja feita a Vossa vontade.

4. Necessidades - o pão nosso de cada dia nos dai hoje.

E há três coisas das quais fugir, por serem o contrário do bem, logo o mal ou pecados, correspondentes aos tais três pedidos, em reverso:

1.  Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido - Vida Eterna.

2. Não nos deixeis cair em tentação - Justiça.

3. Livrai-nos do mal - Necessidades.

Ámen.

Boa Páscoa!

Luis Miguel Novais 

quinta-feira, 17 de abril de 2025

Portugal e a Nato, em Marrocos

Mão amiga fez-me chegar as edições do Financial Times US e UK de hoje. Têm capas diferentes. Com chamadas de capa distintas: na dos Estados Unidos da América chamou-se à capa um artigo meramente remetido para as páginas interiores da edição do Reino Unido da Grã-Bretanha. Com muita relevância para este Portugal adormecido: "US base in 'paradise' braced for Trump´s Nato cuts".

O artigo fala sobre a base naval de Rota, Cádiz, Espanha, a "mais importante base naval da Nato na Europa", "porta do Mar Mediterrâneo" pelo lado do Atlântico. Fica no 'paraíso' da Rota da Luz. Alberga cinco navios de guerra dos EUA capazes de detetar e eliminar mísseis balísticos do inimigo, "os eixos de um escudo americano para proteger a Europa". Uma das "38 bases americanas espalhadas pela Europa". Estabelecida "em 1953, por um pacto entre o então presidente dos EUA, Dwight Eisenhower, e o ditador espanhol Francisco Franco". Contendo, hoje, "três cais, um aeródromo e o que o Pentágono chama as maiores instalações de combustíveis e armamento na Europa".

Diz que Trump está a pensar movê-la para Marrocos.

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 16 de abril de 2025

O Ministério Público não é o Estado

Corria o ano de 1994 neste Portugal adormecido, era Presidente da República Mário Soares, Presidente da Assembleia da República Barbosa de Melo e Primeiro-ministro Cavaco Silva. Ano que recordo bem porque uma parte importante da minha vida profissional como Advogado chocou então de frente com o Ministério Público, na causa célebre que envolveu a Casa do Douro como acionista da Real Companhia Velha, tendo eu representado a parte privada - que obteve vencimento a final. Já então, o Ministério Público pretendia substituir-se ao Estado - tendo o Supremo Tribunal de Justiça terminado por recordar que "o Ministério Público não é o Estado, apenas representa o Estado".

Então, havia sido aprovada a infeliz Lei nº36 de 1994, com a chancela insuspeita dos sobreditos nossos altos representantes democráticos. Lei que abriu uma caixa de Pandora, levando ao tal frenesim que apenas veio a ser refreado pela recordatória do Supremo Tribunal de Justiça - respondendo a questão por mim suscitada e que mereceu da parte do Ministério Público de então o pedido da minha condenação como litigante de má fé, naturalmente rejeitada.

A Lei n.º 36/94, de 29 de Setembro, dispõe a propósito de "Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira". De um modo bastante arbitrário e com demasiados conceitos indeterminados. De tal modo que, no dia de hoje, o Ministério Público permite-se lançar anátemas, sem o devido processo criminal, sobre os dois principais candidatos a Primeiro-ministro nas próximas eleições legislativas.

Luis Miguel Novais

terça-feira, 8 de abril de 2025

O Pai de Eça

Há uns anos, em convalescença, li a obra completa de Eça de Queirós (ou Queiroz, na grafia do tempo dele), que um avô da Isabel tinha subscrito e veio assim parar à biblioteca de nossa casa. No final dos dez volumes, vêm publicadas umas cartas do pai de Eça, que era Juiz de Direito em Lisboa, a interceder junto de editores da capital para que publicassem a obra do filho. Ocorreu-me isto ao acabar de ler um texto de João Miguel Tavares, publicado no jornal Público de hoje, intitulado "Em defesa da honra do primeiro-ministro José Sócrates".

Penso que João Miguel Tavares e Ricardo Araújo Pereira rivalizam em mordacidade no espaço público (antes impresso, hoje teledirigido) com essa antecedente dupla notável Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco. Depois de ler a obra literária (sei lá se completamente) de ambos estes últimos, opto por Camilo (mais erudito e prolífico, mais ao meu estilo polímato); da tal compilação de Eça ficaram-me os Maias, o Padre Amaro e o Mandarim - o resto, pareceram-me esboços e repetições. E as cartas, que são do pai, e constituem uma suprema ironia: não havia quem quisesse editar este génio... sem a cunha (ou pistolão) do importante pai.

A minha filha Marta padece do problema inverso. Para não me vir a arrepender mais tarde, o seu génio não beneficia do meu pistolão ou cunha de independente (sem quebra de humildade, naturalmente menos influente do que o pai de Eça). Perdemos todos, bem sei. Mas, como recorda João Miguel Tavares, neste Portugal adormecido ainda vigora a máxima maçónica (por ele atribuída ao inefável António Almeida Santos): "Para os amigos tudo, para os inimigos nada, aos outros aplique-se a lei".

Há 38 anos e mais uns dias que, praticamente todos os dias da minha vida, combato nos tribunais para que se aplique a lei a todos por igual. Tarefa hercúlea, bem sei, sem cunha ou pistolão. É a vida.

Luis Miguel Novais

P.S. José Sócrates sabe que merece condenação por factos censuráveis que não sou eu o único que conhece. Como dizia um velho ditado da língua portuguesa, hoje em desuso: "a verdade não tem pés, mas caminha".

sexta-feira, 4 de abril de 2025

Resistir com paciência

Em 14 de julho de 2024, senti-o vir: o Fascismo na América. Estamos quase lá. Já não lhe chamam Nacional Socialismo, como na Alemanha Nazi. Chamam-lhe agora Nacionalismo Pós-Constitucional. E vai dar à mesma trumpa.

A tormenta financeira, a que se seguirão crises económicas, provocadas pela tempestade Socialite Hillbilly e suas Love Tariffs, já começaram nos mercados do dinheiro. Onde, como diz um amigo meu, tudo funciona como numa banheira quando se abre o ralo: a primeira água, que ainda sai quente, é a dos amigos; a última, gelada, somos nós. Adivinhe quem sai pior.

Encontro muitas vezes alívio no imortal catecismo de São Tomás de Aquino (compilado em língua portuguesa como A Luz da Fé, edição de Duarte da Cunha e João César das Neves, pela Verbo). Que abro aleatoriamente (já que alea jacta est). Saiu assim, neste tempo de Quaresma:

"Se buscas um exemplo de paciência, encontras ao seu mais alto grau na cruz. Grande paciência é demonstrada em dois casos: quer quando alguém sofre muito e pacientemente, quer quando alguém sofre o que poderia evitar e não evita... Cristo sofreu grandemente na cruz... poderia ter evitado o sofrimento e não evitou... «Como pela desobediência de um só homem, todos se tornaram pecadores, assim, pela obediência de um só, todos se tornarão justos (Rm 5,19)»".

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 2 de abril de 2025

Unicamente a liberdade

Acabei, ontem, de ver o documentário em formato de série colorida na Netflix sobre o estadista Winston Churchill (1874-1965), com imagens reais e ficcionadas, que recomendo como ilustração de um período recente que já não está na nossa (vaga) memória coletiva: Churchill at war (2024), atravessa a sua vida desde a participação na I Guerra Mundial, à participação na II Guerra Mundial, à derrota eleitoral e à vitória eleitoral final.

Convém recordar que Salazar se apoiou nele, invocando a Velha Aliança (que já vem desde o tempo do rei Dom Fernando de Portugal, século XIV), para evitar deixar cair este Portugal adormecido nas garras de Franco ou Hitler na II Guerra Mundial. Embora a questão ibérica tenha passado totalmente ao lado do documentário. Designadamente a questão das bases inglesa e americana nos Açores. 

Fala-se na amarga certeza que Churchill, a dado momento, engoliu: era o fim do império britânico (em troca do apoio da América e da Rússia). Omite-se que Salazar logrou manter intacto o império português - embora depois se tenha deixado envolver noutra guerra, a colonial, que acabou a derrubar o Estado Novo.

A certa altura de Churchill at war, descobrimos que o publicista Churchill se inspirou (embora tal não venha declarado) no também genial seu contemporâneo nosso Fernando Pessoa (1888-1935): "Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade".

Luis Miguel Novais

segunda-feira, 31 de março de 2025

Inéligibilité

A decisão judicial de hoje, em França, que aplica uma pena de inelegibilidade a Marine Le Pen, com impacto directo nas próximas futuras eleições presidenciais francesas de 2027, impedindo-a de se candidatar, tem o condão de baralhar e voltar a dar as cartas democráticas na Europa. Há uma clara afirmação do sistema judicial, com impacto político. Anti-corrupção institucional.

A questão não é inédita na União Europeia: para não ir mais longe, em 4 de maio de 2023 foi decidida uma questão similar pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (ECLI:EU:C.2023:367), num processo que implicava a Roménia. Mas a França é a França. Esta decisão francesa vai ter um bem maior impacto - sobretudo porque implica uma possível candidata presidencial desta nova moda do pós-constitucionalismo (que desvaloriza as constituições e seus princípios fundamentais, como o da separação de poderes, em prol da democracia direta de tipo plebiscitário).

Parece-me importante citar, a este propósito, essa decisão europeia de 2023 (que forma precedente relativamente à francesa, com idêntico impacto nas que venham a ser proferidas por tribunais deste mesmo Portugal adormecido, eventualmente sobre o nosso primeiro-ministro em exercício, enquanto não esteve em Exclusividade Total):

- A questão era "saber se o princípio da proporcionalidade se opõe a uma legislação nacional que prevê uma medida de proibição de exercer cargos públicos eletivos durante um período preestabelecido de três anos em relação a uma pessoa relativamente à qual se tenha verificado existir um conflito de interesses durante o exercício desse cargo";

 - A lei nacional que "prevê a proibição de exercer cargos públicos eletivos por um período de três anos, visa garantir a integridade e a transparência no exercício das funções e dos cargos públicos, bem como prevenir a corrupção institucional. As finalidades desta lei, ..., constituem assim um objetivo legítimo reconhecido pela União Europeia";

- "necessário para realizar o objetivo de garantir a integridade e a transparência no exercício das funções e dos cargos públicos, bem como para prevenir a corrupção institucional";

- "No que se refere ao caráter proporcionado da medida em causa e, nomeadamente, à adequação do seu rigor face à gravidade da infração, há que recordar a importância que a luta contra a corrupção reveste no setor público";

- "Por conseguinte, atendendo à gravidade da lesão do interesse público que resulta de atos de corrupção e de conflitos de interesses, mesmo os menos relevantes, por parte das pessoas eleitas num contexto nacional de elevado risco de corrupção, não se afigura, em princípio, que a proibição de exercer cargos públicos eletivos durante um período pré‑determinado de três anos prevista nesta legislação nacional é desproporcionada face à infração que visa punir".

Ou seja, a nível europeu, a decisão francesa de hoje encontra respaldo no constitucionalismo dos tratados. A inéligibilité vai fazer estrada. Ainda bem. Como diria Pessoa: "primeiro estranha-se, depois entranha-se".

Luis Miguel Novais

domingo, 30 de março de 2025

Xi disse

Enquanto o vice-presidente Vance, dos Estados Unidos da América, arrotava em hillbilly contra a Europa (a propósito do ataque aos terroristas do Iémen e da ameaça de ataque à Gronelândia, ambos actos contrários ao Direito Civil, das nações civilizadas, que nos distingue dos terroristas), o presidente da China, felizmente, não lambe os beiços aproveitando para invadir a antiga China, hoje conhecida por Taiwan.

Pelo contrário, segundo leio no FTWeekend (29/30 de março, pg. 3 do caderno principal), dia 28 de março de 2025, Xi Jinping, numa reunião com CEO de diversas multinacionais em Pequim, "pleads for trade stability" ("apela à estabilidade comercial"). Disse:

- "Together, we must safeguard the stability of global industrial chains and supply chains" ("Juntos, devemos salvaguardar a estabilidade das cadeias industriais e de abastecimento globais");

- "Decoupling and severing ties harms others without benefiting oneself: it leads nowhere" ("Desvincular e romper laços prejudica os outros sem beneficiar a si mesmo: não leva a lugar nenhum");

- "We believe that foreign-invested entreprises in China should be guaranteed national treatment, which means consistency in the application of laws and equal status and treatment" ("Acreditamos que as empresas com investimento estrangeiro na China devem ter garantido o tratamento nacional, o que significa consistência na aplicação das leis e igualdade de estatuto e tratamento").

Sábias palavras que Xi disse. Trump o ouça. E que se aplique, pelo bem comum.

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 26 de março de 2025

1776

Não por acaso, o dia presente do meu livro Natal com Pombal (ainda inédito) situa-se no ano de 1776, neste Portugal adormecido. O Marquês de Pombal encontra-se em família na residência do Conde de Oeiras (seu filho mais velho). É Natal. O princípio do fim de algo. O princípio de algo novo.

Vem-me tal à memória pelo paralelo que estamos a viver, hoje. 1776 foi o princípio do constitucionalismo na América e, depois, alastrou-se pelo mundo da contemporaneidade ocidental, sobretudo a partir da Revolução de 1789 (na França, mas com o apoio da América, primeiro país a reconhecer a nova realidade pós-guilhotina na Europa). 

De 1776 surgiram grandes instituições internacionais, então novas realidades de Estado: democracia, separação de poderes, limitação de mandatos, liberdade de expressão, liberdade de comércio, descolonização, etc.. Um longo etc. para tudo o que representou a América (mais propriamente os Estados Unidos da América, para não arreliar os meus amigos mexicanos e demais americanos) nestes últimos 249 anos.

Sem ser spoiler, posso aqui deixar afirmado que o Marquês de Pombal compreendeu a mudança. Viu-a vir. Sabemos-lo por um decreto seu de agosto de 1776, por meio do qual proibiu nos portos de Portugal (então ainda compreendendo as ex-colónias, Brasil incluído) os navios que navegavam com a bandeira dos novos Estados surgidos com a Declaração de Independência de 4 de julho de 1776.

Esta nova moda nos Estados Unidos da América, a que agora já chamam pós-constitucionalismo, reivindicando poderes imperiais para o presidente, sabe a fim de algo. O princípio de algo novo. Poderá ser bom?

Luis Miguel Novais

segunda-feira, 24 de março de 2025

Liberdade de expressão

Tendo vivido uma revolução com meros dez anos de idade, felizmente no sentido de conferir e assegurar liberdade em segurança aos cidadãos deste Portugal adormecido, sou particularmente sensível ao retrocesso civilizacional que estamos a viver. E que poderá levar-nos a outra revolução, de sinal necessariamente contrário. O que seria lamentável.

Recordo que na Europa temos, desde 1949, o Tratado de Londres que congrega hoje 46 Estados, no Conselho da Europa. Portugal aderiu em 1976, logo na sequência da dita Revolução de 25 de abril de 1974. 

Este Tratado do Conselho da Europa, hoje com sede em Estrasburgo, não se confunde com o Tratado da União Europeia (originalmente de Roma, hoje de Lisboa), ao qual aderimos em 1986. Sobrepõem-se. Este ultimo, praticamente, impõe-se. Por se tratar de um "clube" mais restrito. E hoje sem o Reino Unido da Grã-Bretanha.

Encontro, porém, utilidade no dito Tratado de Londres e seu tribunal, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Aí se aplica a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, onde expressamente se trata da liberdade de expressão, no seu artigo 10º, que diz assim:

"Liberdade de expressão
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão.
Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade
de receber ou de transmitir informações ou ideias sem que
possa haver ingerência de quaisquer autoridades públicas e
sem considerações de fronteiras. O presente artigo não impede
que os Estados submetam as empresas de radiodifusão, de
cinematografia ou de televisão a um regime de autorização
prévia.
2. O exercício desta liberdade, porquanto implica deveres e
responsabilidades, pode ser submetido a certas formalidades,
condições, restrições ou sanções, previstas pela lei, que constituam
providências necessárias, numa sociedade democrática, para
a segurança nacional, a integridade territorial ou a segurança
pública, a defesa da ordem e a prevenção do crime, a protecção
da saúde ou da moral, a protecção da honra ou dos direitos de
outrem, para impedir a divulgação de informações confidenciais,
ou para garantir a autoridade e a imparcialidade do poder
judicial".

Fôra eu Presidente da República, faria questão de recordá-lo ao atual e optativos primeiro-ministros. Como um poema de Camões.

Luis Miguel Novais

quarta-feira, 19 de março de 2025

O Silêncio de Cavaco

Num interessante artigo de opinião publicado na edição de ontem do jornal Público, intitulado "O silêncio ensurdecedor do PSD", Pedro Norton, observa, sobre os casos de Luis Montenegro que trouxeram o derrube do Governo e do Parlamento deste Portugal adormecido: "O silêncio de que falo é o das dúvidas que não se levantaram, das vozes que não questionaram, dos incómodos que não se ouviram, das críticas, ainda que veladas, que não se fizeram".

Eu explico (como ex-militante do único partido em que militei): dos estatutos do PPD-PSD (que é assim que ainda se chama o partido, embora o PPD de Sá Carneiro esteja fora de moda) resulta para os militantes um dever de lealdade. Integrei o Conselho de Jurisdição do partido, onde nos debruçávamos, entre outras coisas essenciais para a democracia, sobre a falta de lealdade de membros do partido. Literalmente, mesmo comportando a possibilidade de divergências, no quadro da natural liberdade de expressão da opinião, existe a possibilidade de sancionar disciplinarmente um militante por falta de lealdade (os estatutos foram aprovados pelo Tribunal Constitucional). Por isso, para poder falar livremente sobre a rampa descendente em que se encontra o PPD-PSD, sem ser acusado de deslealdade, desfiliei-me.

Estranho que Cavaco Silva ainda não tenha feito o mesmo que eu.

Luis Miguel Novais

domingo, 16 de março de 2025

Guronsan

Na minha juventude, nos anos 80 do século passado, as pastilhas efervescentes de Guronsan eram de rigor após os excessos da noite anterior. Entretanto, caíram em desuso (pelo menos, para mim, de corpo agora enfraquecido). Mas deverão servir aos membros dos caídos Governo e Parlamento deste Portugal adormecido.

Um Presidente adormecido preferiu deixar cair, de uma assentada, Governo e Parlamento. Perante um choque frontal entre os líderes de dois dos três principais partidos, o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, lavou suas mãos, como Pilatos. Deixou de arbitrar. Com evidente benefício para o terceiro partido, da extrema-direita, e para o almirante das vacinas.

Valham-nos as doces palavras de hoje do Papa Francisco: "O nosso corpo está fraco, mas nada nos impede de amar". Vai um Guronsan?

Luis Miguel Novais

domingo, 9 de março de 2025

O cão, o leopardo e o chacal

Tenho uma especial empatia com os autores que publicam poucas novelas. De preferência romances históricos bem pesquisados e fora da caixa, como tal intemporais. E revejo-me nos autores póstumos. Categorias em que se inserem Il gattopardo (publicado em livro em 1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (falecido em 1957).

Que todos vimos adaptado para cinema (1963), por Luchino Visconti. E agora (2025) também adaptado por Tom Shankland para streaming pela Netflix - sob o título O Leopardo. Que recomendo - talvez seja de não ler o que se segue enquanto não tiver visto, admito que possa conter algo de spoiler.

Passou para a imortal memória coletiva a frase do Gattopardo "é preciso mudar tudo, para que não mude nada". Mas tem mais, tem muito mais. A certa altura, o príncipe protagonista alerta-nos: nós que somos os leões, os leopardos, os grandes gatos, estamos a ser substituídos pelas hienas, pelos chacais, pelos pequenos gatos. "Daqui a duzentos anos só eles existirão", como deputados e senadores. Pois.

O senador, que veio do povo como presidente da câmara municipal, cacique local que rouba eleições e enriquece à chacal, ainda replica ao príncipe: então nós que, em lugar de herdar, fomos subindo na vida, enriquecendo, não vamos agora impor o nosso preço? Os gatos grandes viviam a lei da nobreza. Os gatos novos vivem a lei da riqueza. São éticas diferentes, como é hoje evidente.

Tive ocasião de ler, no prefácio do livro, as cartas testamento do autor. Numa pede que lhe publiquem o livro postumamente, e confessa que é autobiográfico, baseado no seu bisavô, ambos foram Príncipe de Lampedusa, Sicília, hoje Itália. "Fomos invadidos por praticamente toda a gente, nos últimos 2500 anos, já estamos acostumados", diz o príncipe siciliano no livro; daí o famoso "é preciso mudar tudo, para que não mude nada".

Noutra carta, enigmaticamente, diz o autor: "o cão é muito importante". Nesta série da Netflix o cão é enorme e lindo. Juntamente com o padre, acompanha quase sempre o príncipe. É muito capaz de simbolizar-nos a nós, o povo, cingidos entre leopardos e chacais.

Luis Miguel Novais

sábado, 8 de março de 2025

Demissão do Governo

A atual Constituição da República Portuguesa dispõe de um normativo intitulado "Demissão do Governo", o artigo 195º, que diz precisamente assim:

"1. Implicam a demissão do Governo:
a) O início de nova legislatura;
b) A aceitação pelo Presidente da República do pedido de demissão apresentado pelo Primeiro-Ministro;
c) A morte ou a impossibilidade física duradoura do Primeiro-Ministro;
d) A rejeição do programa do Governo;
e) A não aprovação de uma moção de confiança;
f) A aprovação de uma moção de censura por maioria absoluta dos Deputados em efectividade de funções.
2. O Presidente da República só pode demitir o Governo quando tal se torne necessário para assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas, ouvido o Conselho de Estado".

Os líderes dos dois principais partidos de oposição ao PSD já vieram dizer que não aprovarão a moção de confiança de terça-feira próxima futura. A maioria parlamentar, portanto, não aprovará a moção de confiança. O que irá implicar a demissão do Governo deste Portugal adormecido, por ativação pelo Presidente da República do disposto no número 1 da alínea e) do artigo 195º. Mas tal não é automático.

Com efeito, o número 2 do artigo 195º não deixa de poder ser lido como uma norma travão: "O Presidente da República só pode"... Ou seja, o Presidente da República tem o poder de entender que não é a altura de demitir o Governo - seria, de resto, o que eu faria, se fosse o Faria: para "assegurar o regular funcionamento das instituições democráticas" manteria o Governo, aceitando o pedido de demissão apresentado pelo atual Primeiro-Ministro e nomeando outro Primeiro-Ministro (afinal, o Governo tem Ministros de Estado, cuja função é precisamente a de substituir o Primeiro-Ministro). Em lugar de dissolver o Parlamento e convocar novas eleições, a meu ver desnecessárias e, no quadro atual, perniciosas - o atual Primeiro-Ministro vai arrastar-nos a todos para o seu lamaçal?

A última palavra pertence, segundo a Constituição, ao Senhor Presidente da República. Que fará?

Luis Miguel Novais

quinta-feira, 6 de março de 2025

Confia Sarmento

Mão amiga fez-me chegar cópia da Moção de Confiança hoje apresentada pelo Governo na Assembleia da República - vou tomar esta cópia por verdadeira, por não ter motivos para acreditar que quem ma enviou me quis enganar.

Intitula-se "Estabilidade efetiva, com sentido de responsabilidade"; enuncia as conquistas do Governo desde a sua tomada de posse, assumindo uma "verdadeira transformação positiva do País".

Chamou-me particularmente a atenção o facto de esta Moção de Confiança não vir assinada pelo atual Primeiro-ministro - que, de resto, se encontra hoje em Bruxelas. Foi assinada pelo Ministro de Estado e das Finanças, pelo Ministro da Presidência e pelo Ministro Adjunto e da Coesão Territorial. Apenas. Por esta ordem.

Se eu fosse Presidente da República, cairia na tentação de não dissolver o Parlamento, mesmo chumbada esta Moção de Confiança. Deixaria o atual Primeiro-ministro, entretanto demitido de moto próprio após o chumbo da mesma, a defender-se na Comissão Parlamentar de Inquérito (onde, como deputado, provaria, ou não, a inexistência de factos que tenham integrado violação de exclusividade de funções públicas). E convidaria o Ministro de Estado e das Finanças, Joaquim Morais Sarmento, para Primeiro-ministro. 

Não iríamos, assim, para eleições legislativas. Em prol da tal "estabilidade efetiva, com sentido de responsabilidade" que assina Sarmento.

Luis Miguel Novais

terça-feira, 4 de março de 2025

Portugal em Paz

A guerra em direto, a instabilidade no Tratado do Atlântico Norte, a aproximação de eleições para Presidente da República, deverão merecer uma reflexão coletiva dos Portugueses sobre o nosso futuro posicionamento perante a guerra e a paz na Europa. E no nosso jardim.

Segundo a nossa Constituição: “Portugal preconiza a abolição do imperialismo, do colonialismo e de quaisquer outras formas de agressão, domínio e exploração nas relações entre os povos, bem como o desarmamento geral, simultâneo e controlado, a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos” (Artigo 7º, nº2 da Constituição da República Portuguesa - CRP).

“Portugal empenha-se no reforço da identidade europeia e no fortalecimento da ação dos Estados europeus a favor da democracia, da paz, do progresso económico e da justiça nas relações entre os povos” (Artigo 7º, nº5, CRP).

“O Presidente da República representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado e o regular funcionamento das instituições democráticas e é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas” (Artigo 120º, CRP).

Compete ao Presidente da República: “Declarar a guerra em caso de agressão efetiva ou iminente e fazer a paz, sob proposta do Governo, ouvido o Conselho de Estado e mediante autorização da Assembleia da República, ou, quando esta não estiver reunida nem for possível a sua reunião imediata, da sua Comissão Permanente” (Artigo 135º, al. c), CRP).

Compete à Assembleia da República: “Aprovar os tratados, designadamente os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de retificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares, bem como os acordos internacionais que versem matérias da sua competência reservada ou que o Governo entenda submeter à sua apreciação” (Artigo 161º, al. i), CRP). E, bem assim, “Autorizar o Presidente da República a declarar a guerra e a fazer paz (Artigo 161º, al. m), CRP).

Compete ao Governo: “Propor ao Presidente da República a declaração da guerra ou a feitura da paz” (Artigo 197º, al. g), CRP).

Às Forças Armadas “incumbe a defesa militar da República” (Artigo 275º, nº1, CRP). “As Forças Armadas obedecem aos órgãos de soberania competentes, nos termos da Constituição e da lei” (Artigo 275º, nº3, CRP). “As Forças Armadas estão ao serviço do povo português, são rigorosamente apartidárias e os seus elementos não podem aproveitar-se da sua arma, do seu posto ou da sua função para qualquer intervenção política” (Artigo 275º, nº4, CRP).

“Incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte” (Artigo 275º, nº5, CRP).

Esta filigrana jurídica, de checks and balances à portuguesa, deverá poder salvaguardar-nos da circunstância de um ex-militar vir a ser Presidente da República. O “Comandante Supremo das Forças Armadas” não poderá afinal, sem mais, meter-nos numa guerra: necessita da proposta do Governo e da autorização da Assembleia da República. 

Não quero com isto dizer que apoio tal circunstância eventual. Pelo contrário, defendo que o próximo Presidente da República não deve ser um ex-militar. Precisamente devido à instabilidade no Tratado do Atlântico Norte.

Tive oportunidade de liderar almirantes e generais enquanto titular de alto cargo público, administrador executivo das indústrias da Defesa Nacional, na então Empordef, e guardo boas recordações das sinergias então criadas. Cada um no seu posto, porém: eu como civil, esses como militares, todos ao serviço do povo português.

Para não ir mais longe do que a primeira república, cuja debilidade levou à participação de Portugal na guerra, a nossa próxima reflexão coletiva deverá poder incluir a paz. Eventualmente, pela neutralidade.

Luis Miguel Novais

 (Texto primeiro publicado no jornal Público de 4 de março de 2025)