Tenho uma especial empatia com os autores que publicam poucas novelas. De preferência romances históricos bem pesquisados e fora da caixa, como tal intemporais. E revejo-me nos autores póstumos. Categorias em que se inserem Il gattopardo (publicado em livro em 1958), de Giuseppe Tomasi di Lampedusa (falecido em 1957).
Que todos vimos adaptado para cinema (1963), por Luchino Visconti. E agora (2025) também adaptado por Tom Shankland para streaming pela Netflix - sob o título O Leopardo. Que recomendo - talvez seja de não ler o que se segue enquanto não tiver visto, admito que possa conter algo de spoiler.
Passou para a imortal memória coletiva a frase do Gattopardo "é preciso mudar tudo, para que não mude nada". Mas tem mais, tem muito mais. A certa altura, o príncipe protagonista alerta-nos: nós que somos os leões, os leopardos, os grandes gatos, estamos a ser substituídos pelas hienas, pelos chacais, pelos pequenos gatos. "Daqui a duzentos anos só eles existirão", como deputados e senadores. Pois.
O senador, que veio do povo como presidente da câmara municipal, cacique local que rouba eleições e enriquece à chacal, ainda replica ao príncipe: então nós que, em lugar de herdar, fomos subindo na vida, enriquecendo, não vamos agora impor o nosso preço? Os gatos grandes viviam a lei da nobreza. Os gatos novos vivem a lei da riqueza. São éticas diferentes, como é hoje evidente.
Tive ocasião de ler, no prefácio do livro, as cartas testamento do autor. Numa pede que lhe publiquem o livro postumamente, e confessa que é autobiográfico, baseado no seu bisavô, ambos foram Príncipe de Lampedusa, Sicília, hoje Itália. "Fomos invadidos por praticamente toda a gente, nos últimos 2500 anos, já estamos acostumados", diz o príncipe siciliano no livro; daí o famoso "é preciso mudar tudo, para que não mude nada".
Noutra carta, enigmaticamente, diz o autor: "o cão é muito importante". Nesta série da Netflix o cão é enorme e lindo. Juntamente com o padre, acompanha quase sempre o príncipe. É muito capaz de simbolizar-nos a nós, o povo, cingidos entre leopardos e chacais.
Luis Miguel Novais